No dia 24/07/2021, no Estado de São Paulo, houve o incêndio da estátua do bandeirante Borba Gato, símbolo da denominada "expansão" bandeirante aos interiores do nosso país. O seu incêndio reacendeu um debate importantíssimo na sociedade sobre as nossas construções de imagens históricas e como a memória do período colonial ainda é interpretada no nosso meio social.
Esse fato revela um debate fundamental, que é como nós brasileiros estamos dando importância memorial para símbolos que detiveram um papel de destruição de tradições e escravização de nossos povos originários. Em entrevistas recorrentes dos participantes do incêndio, os mesmos disseram que a intenção da prática era enfatizar o debate sobre qual seria a importância de ter uma imagem de uma figura que matou, estuprou e causou um genocídio em várias etnias indígenas.
Esse fato incide como é importante para compreendermos o papel de fatos históricos contemporâneos que têm como foco principal reabrir o debate sobre interpretações históricas que construímos a fim de exaltarmos nossos próprios assassinos. Nisso, o incidente revela como a própria justiça vai interpretar o ato, pois o inquérito apontado definiu que a estátua não foi danificada em sua estrutura e, devido a isso, permanece até hoje no mesmo local.
Essa discussão sobre nossa própria memória histórica não é nova, pois ao longo das décadas foram registrados variados ataques a monumentos históricos em São Paulo, principalmente monumentos relacionados à exaltação dos bandeirantes.
Esses mesmos atos, julgo à minha opinião, são eventos históricos que reacendem debates importantes para as nossas construções históricas. A imagem de um bandeirante como um "desbravador de terras" já é batida e ultrapassada. A história serve para nos mostrar caminhos de reinterpretações que têm como sentido mostrar a verdade através desse mesmo fato.
As sucessivas abordagens históricas que damos aos eventos ao longo do tempo nos dão o direito pleno de dizer e reconsiderar teses anteriores, claro, sempre ressaltando o respeito pela produção acadêmica passada. Essa mesma reconsideração reafirma o debate da dependência da "interpretação única", fator esse que na história não deve ser considerado, pois o tempo habilita o historiador a novas confirmações e novas teorias, reformulando nossa prática de compreender o passado. Esse mesmo passado, como no caso citado do bandeirante, deve ser entendido hoje não como um "desbravador de terras", mas sim como um símbolo de um assassino que a história o objetificou ao longo do tempo.
A figura de Borba-Gato não é um único fato histórico "remodelado" de forma positiva em nossa história. As estátuas históricas que possuem novas caracterizações são inúmeras, como as esculturas de Duque de Caxias, Maurício de Nassau, Thomé de Souza e Castelo Branco. Todas essas figuras se tornaram "personagens históricos" devido às suas participações em eventos importantes, mas que também se tornaram relevantes por serem repressores, como Castelo Branco e Duque de Caxias, mas também pessoas que influenciaram no comércio e tráfico de escravizados africanos e povos originários, como Thomé e Nassau, por exemplo.
Esses exemplos de figuras são importantes para compreendermos qual é a nossa memória histórica na contemporaneidade. Será que nas próximas décadas continuaremos a utilizar variados nomes de presidentes do país durante a ditadura militar e também de bandeirantes? Personagens como Fernão Dias, Arthur Costa e Silva, Médici e outros figuram em nossa memória e figuravam em nossos viadutos e avenidas durante décadas.
Diversas pesquisas históricas realizadas por universidades brasileiras têm-se dedicado a mapear regiões que possuem nomes vinculados a ex-presidentes da ditadura militar, por exemplo. Mas, infelizmente, essas pesquisas importantíssimas não conseguem chegar ao público de forma integral, ou chegam parcialmente, por meio de manchetes de leitura rápida em sites de notícias, tornando essa memória política algo "presentista" e pouco contextualizado sobre tal momento histórico.
Os debates que suscitam essa problemática são imensos e geram extensivas discussões, passando por diversas áreas e fazendo efeito prático em certas ocasiões. Penso que há medidas a serem tomadas que podem ser importantes, começando por incentivar a pesquisa nas escolas, levantando debates entre os jovens para entenderem o espaço urbano onde estão inseridos, espaço esse que, compreendido e interpretado, pode ocasionar uma mudança em seu próprio cotidiano. Nisso, essa relação construída no ambiente escolar pode ser transmitida a outros âmbitos, chegando aos meios públicos e às redes sociais, principal meio de divulgação de informações na atualidade.
Entendendo isso, creio que a nossa história e a memória de nossa sociedade podem ser melhor contextualizadas, compreendidas, e principalmente reinterpretadas. Medida essa que, futuramente, pode abrir novas abas para novas percepções, mais lugares onde a memória pode estar ligada e mais medidas preventivas de reeducação dessa memória, tornando a nossa cidade um lugar de ação para com as verdadeiras figuras que marcaram a nossa história. Figuras essas que buscaram seus direitos, lutaram por suas terras e pelo pertencimento de sua cultura, e de sua memória pessoal, essa que é fundamental para nosso cotidiano como cidadãos.