Com o regresso de Nanni Moretti às salas com O Sol do Futuro, Portugal teve a boa fortuna de ter em simultâneo a exibição em sala de A Coisa, documentário já com mais de 30 anos sobre a refundação do PCI feito por Moretti próximo do tempo de Palombella Rossa, que foi igualmente reposto em cartaz. A programação só poderia ser mais certeira se também Abril tivesse sido reexibido.
O Sol do Futuro não tem a emoção transbordante de Abril (referência histórica da política italiana, não menos do que em Portugal) e o seu contagiante tema, de certo modo está nos seus antípodas: o casamento a acabar em vez de a criança a nascer, o cansaço instalado em vez da expectiva agitada, o fantasma do suicídio em vez da esperança do recomeço. Nos últimos largos anos essa tonalidade sombria era cada vez mais dominante no cinema de Moretti e, no entanto, com O Sol do Futuro tudo isso se inflecte, um pouco como em Abril, com o(s) filme(s) dentro do filme, a crítica à cultura audiovisual, a revisitação do seu próprio cinema. Aqui mais nitidamente perto das duas obras que em Lisboa acompanharam este novo filme em sala, mas em qualquer caso sem uma limitação ao tema político, muito menos comunista em particular (mesmo Palombella Rossa tem tanto de biográfico como de militante comunista).
A expectativa era um revisitar de Palombella e de certo modo não desiludiu. Não pelo tema mas pela «referência» feita a certa altura, quando os personagens estão na sala de cinema a ver La Dolce Vita, justamente o plano final do filme de Fellini – e o plano final de Palombella sempre me parecera uma vénia a esse final felliniano. É apenas uma das múltiplas referências ao cinema e à música italianos, embora muito mais do que apenas a italianos, por todo o filme. Mas por ser a mais sugestiva das associações entre o passado e o presente da sua Obra, bem como entre o passado e o presente do cinema, esse momento é, senão revelador (ignoro se Moretti sequer pensa os planos nestes termos), pelo menos animador. E todo o filme é um manifesto, por vezes com um tanto de jeremíada bem humorada, pelo cinema, pela cultura, pela História (política, ao menos) no condicional. Como o final deixa claro, o que Moretti quer é escrever a sua História com ‘ses’, no que faz muito bem – essa é a única que se pode escrever, toda a outra já está registada.
Esse registo encontra-se em A Coisa e em Palombella, referências evidentes e inevitáveis se nos ativermos ao tema imediato, a crise política como medium da crise profissional e da crise pessoal, em última análise. Ver em 2023 Moretti queixar-se enquanto nada na piscina da sua escassa produtividade é reencontrar o Moretti de há 30 anos, no mesmo estado, em Palombella. Ouvir os camaradas do PCI de A Coisa, a falarem livremente sobre o Partido e a sua história é reencontrar a franqueza com que Moretti o fazia pela sua própria voz em Palombella e deter a chave para a irritação que reserva aos que hoje imaginam que só na Rússia havia comunistas. Não sendo um filme de tese, incorrendo em lugares-comuns fáceis (pelo seu efeito cómico no filme?) como a destrinça entre Stalin (ditador) e Lenin (verdadeiro comunista), este Sol é um agregado de planos diferentes habilmente escritos, interpretados, filmados, editados, enfim, realizados em conjunto. Esses diferentes planos (pessoal, familiar, social, profissional, cultural, histórico, político) não são incomuns na obra de Moretti mas aqui fundem-se a um ponto que não víamos desde Abril.
Não faltaram a Abril, quando estreou, detractores que o viam como demasiado woodyallenesco (como se isso fosse um problema… aliás, nem o será para Moretti). Chega a ter graça recordá-lo quando Allen também estreou em 2023 um filme celebrado como de «regresso à boa forma» (embora muito mais fraco que este de Moretti). E contudo é em Abril que encontramos algumas das cenas mais políticas do cinema de Moretti, desde as célebres como o «diz alguma coisa de Esquerda, d’Alema» até ao menos lembrado episódio dos refugiados no porto de Bari, ou o «mcguffin» da vitória de eleitoral de Berlusconi que será desenvolvido em pleno já na década de 2000, em O Caimão. Isto para dizer que a festividade de Abril nada tinha de superficial. E se a semelhança na estrutura entre os dois filmes é notória, até no final de cada um, ambos em modo de despedida, a boa recepção a este Sol talvez indique que o público, além de apreciar um regresso ao melhor cinema do realizador, talvez esteja pronto para rever Abril, vê-lo com olhos lavados. Ao fim de 25 anos, era já tempo.
Moretti não foi até hoje, nem nos seus melhores momentos (Caro Diario, Aprile), autor de um filme com a dimensão de La Dolce Vita, algo com o que, aliás, aprece conviver bem. Em vez disso, é um autor, no sentido pleno e hoje um tanto em desuso do termo, como poucos há (Allen sendo um dos poucos outros), cuja complexidade se faz de muito modos, sem se definir por um género ou um tema apesar de ter leitmotivs tão definidos que suscitam simplificações fáceis. O Sol do Futuro, como sucede com o melhor do seu cinema, percorre a um ritmo intenso esses temas e fá-lo com uma tão contagiante emoção que reaviva admirações antigas e cria (espero) novos públicos. Ao contrário dos produtos «WTF» que verbera, com tanto talento, este é um filme que faz bem ao cinema.