O presente artigo debruça-se sobre literatura e memória em Declaração de Paz (Vampiros), de Azagaia, pseudónimo de Edson da Luz, rapper moçambicano, falecido a 09 de Março de 2023. Azagaia é (re) conhecido pela forma nua e crua com que aborda, nas suas músicas, assuntos sociais e/ou políticos de Moçambique, África, e do mundo.

A música Declaração de Paz (Vampiros), de Azagaia, enquanto poesia narrativizante engajada na abordagem do conflito político-militar em Moçambique, denuncia a falta de altruísmo por parte dos governantes, a guerra, a violência e, por consequência disso, a miséria.

Neste prisma, acredita-se que o sujeito poético, na música em pauta, articula a história e a ficção, como forma de evocar, inevitável e atemporalmente, o imaginário colectivo (moçambicano), evidenciando sobremaneira a relação entre a literatura e memória.

Aspectos teórico-metodológicos

Como atesta Silva (2020), considera-se relevante conceber o fenómeno literário enquanto instância social e historicamente constituída, notabilizando os condicionantes extraliterários e contextuais que permeiam as complexas relações intersubjectivas entre os sujeitos no mundo.

Será neste prisma em que procurarei demonstrar, neste artigo, até que ponto, numa abordagem atemporal, Azagaia cruza a literatura e memória na sua Declaração de Paz (Vampiros), lançada no pretérito ano de 2014.
Vale ressaltar que, em literatura, no âmbito da representação, “embora haja uma relação de interdependência activa entre o representante e o representado, o discurso artístico afirma-se relativamente autónomo.” (Silva, 1984)

Literatura e memória: uma abordagem atemporal em Declaração de Paz (Vampiros), de Azagaia

Azagaia principia a sua Declaração de Paz (Vampiros), enunciando o coro, que, permeado por uma anástrofe, dá conta de que os vampiros (cognome criteriosamente seleccionado para designar os governantes) não querem saber de ninguém, inclusive do povo, seu patrão, quando diz “Tu não vês/ não querem saber de ti, não querem/ saber de mim,/ vampiros,/ os vampiros (…)” (Azagaia, 2014)

Na sua primeira estrofe, o sujeito poético chama atenção aos elementos poetizados, i.e., partidos políticos em conflito (FRELIMO e RENAMO), particularmente o primeiro, ao facto de que a paz não é garantida pelas armas, quando diz “Tu pensas o quê?/ que as armas vão garantir a paz?/ quando as balas são disparadas,/ já não voltam para trás,/ é o país que vai p'ra trás,/ enquanto os VIP's vão para frente (…)”

Paralelamente a isto, o sujeito poético remete o leitor-ouvinte a um diálogo de si para si, quando diz “(…) pergunta-me se nessa guerra estão/ os filhos do presidente,/ os filhos de generais/ ou filhos dos dirigentes? (…)” (Azagaia, 2014)

Subverte-se, aqui, a despreocupação que, em decorrência da não participação dos seus filhos e/ou familiares na guerra, os dirigentes alimentam, enquanto os outros sucumbem, tal como frisa ainda na primeira estrofe: “(…) até quando os inocentes vão morrer/ pelos cobardes sentados nos gabinetes/ a ordenarem mais ataques? (…)” (Azagaia, 2014).

E acrescenta: “(…) até quando tu e eu vamos deixar/ que vampiros suguem o nosso sangue/ para alimentarem esse vírus?/ essa sede pelo poder/ que só se mata com tiros (…)” (Azagaia, 2014) Para vincar a subversão da atemporalidade, o sujeito poético diz mais: “mais dezasseis anos no nosso sangue/ vão abrir rios/ até quando vamos pensar/ que vampiros recusam sangue?” (Azagaia, 2014)

Ora, o sujeito poético não estaria a referir, no trecho acima, ao dizer “mais dezasseis anos no nosso sangue”, que esta guerra recupera lembranças da fatídica guerra dos 16 anos, entre a FRELIMO e a RENAMO, que culminou com a assinatura do Acordo Geral de Paz, em Roma, em 1992?

Não estaria, o sujeito poético, a levar-nos à reflexão sobre uma atemporalidade, uma vez que, até aos dias que correm, ainda se vivem conflitos armados que recrudescem a cada dia e, quiçá, a única coisa que muda sejam as designações? Não se trata de um exercício difícil, basta remontarmos (e não só) às últimas eleições autárquicas de 11 de Outubro de 2023.

Teria frisado, no princípio da minha abordagem neste artigo, que o cognome vampiro, usado para designar a máquina governamental moçambicana, foi criteriosamente seleccionado pelo sujeito poético. Ora, que argumento justifica tal asserção?

No fim da primeira estrofe, o sujeito poético advoga: “(…) esquecemos que esses bichos/ não vivem do próprio sangue (…)” (Azagaia, 2014), dito de outro modo, conotativamente, o sujeito poético quer denotar que esta classe, cognomada vampiros, vive do sangue dos oprimidos, o povo, por isso a prevalência destes conflitos armados.

Diante disto, o sujeito poético sente-se instado a despertar o povo, a convidá-lo a agir, pelo que assevera, no princípio da segunda estrofe:

Estão convocados para a greve todos/ os funcionários do Estado,/ paralisem o comércio e mandem fechar/ os mercados,/ fechem todas as fronteiras,/ desactivem as alfândegas,/ ferro-portuários, desliguem essas máquinas,/ abandonem os escritórios/ e interrompam os campeonatos,/ moçambicanos estão a morrer/ longe dos relvados,/ os camponeses estão em greve,/ fugiram das aldeias (…)

(Azagaia, 2014)

Ora, esta situação vinca a máxima de que o fenómeno literário, enquanto instância social e historicamente constituída, notabiliza, tal como defende Silva (2020), os condicionantes extraliterários e contextuais que permeiam as complexas relações intersubjectivas entre os sujeitos no mundo.

Ademais, para subverter a ideia de conflito político-militar, o sujeito poético, metonimicamente, chama à reflexão a necessidade de o partido no poder desde as primeiras eleições multipartidárias, em 1994, FRELIMO, representado pelo substantivo “maçaroca” (que advém do logótipo do partido) abrir espaço para que o partido maioritário da oposição, RENAMO, representado pelo substantivo “perdiz” (que advém do seu logótipo) também governe, quando diz: “(…) o que custa a maçaroca/ dar uns gãos à perdiz?” (Azagaia, 2014).

Mais ainda, o sujeito poético, deliberadamente, concede razão à oposição, pois que, tal como se pode depreender da história das eleições tanto autárquicas quanto presidenciais em Moçambique, sempre foram pinceladas pela fraude, colocando o partido FRELIMO no poder desde 1994, quando diz: “(…) o galo está com fome,/ tem razão quando exige,/ é tudo para todos ou nada para ninguém (…)” (Azagaia, 2014)

Porque num país deveras democrático o povo é o patrão, o sujeito poético chama igualmente atenção, metaforicamente, à necessidade de valorização deste, servindo-se da intertextualidade, quando cita o poema Grito Negro, do saudoso poeta moçambicano José Craveirinha:

Eu sou carvão!/ E tu arrancas-me brutalmente do chão/ e fazes-me tua mina, patrão./ Eu sou carvão!/ E tu acendes-me, patrão,/ para te servir eternamente como força motriz/ mas eternamente não, patrão./ Eu sou carvão e tenho que arder sim;/ queimar tudo com a força da minha combustão./ Eu sou carvão;/ tenho que arder na exploração/ arder até às cinzas da maldição/ arder vivo como alcatrão, meu irmão,/ até não ser mais a tua mina, patrão./ Eu sou carvão./ Tenho que arder/ Queimar tudo com o fogo da minha combustão./ Sim! Eu sou o teu carvão, patrão.

(Craveirinha, s/d)

Ora, se para Benevides, Felipe e Da Silva (2018), neste poema, o eu lírico perpetra uma interpretação do processo de colonização e descolonização de Moçambique após aproximadamente quatro séculos de domínio português, marcado estruturalmente pela escravidão e imperialismo, não estaria, o sujeito poético da música em pauta, a subverter a ideia de que apesar de Moçambique ser independente, ainda continua a ser colonizado pelo partido que se intitula o libertador da pátria?

Azagaia, na música em pauta, prova tratar-se de um exímio músico (e eu arrisco-me a dizer poeta) de intervenção social, cujas palavras não lhe são algemadas e é desprovido de medo, pois que, articulando a (amarga) História de Moçambique com a ficção, evoca, despudorada, inevitável e atemporalmente, o imaginário colectivo (moçambicano), evidenciando sobremaneira a relação entre a literatura e memória, memória esta que ainda nos persegue até aos dias que correm.

Bibliografia

Azagaia, (2014). Declaração de Paz (Vampiros).
Benevides, J., Felipe, D. e Da Silva, S. (2018). Uma Fênix Renascida das “Cinzas da Maldição”: Poesia e História Moçambicana em “O Grito Negro”, de José Craveirinha. In, Cadernos CERU, série 2, vol. 29, n. 1.
Caveirinha, J. (s/d) Grito Negro. Ler, resenhar e aprender.
Silva, V. (1984). Teoria da literatura. 6ªed., Coimbra: Livraria Almedina.
Silva, L. (2020). Os Narradores da Sobrevivência: Retomando Aspectos da Ficção e História na Obra de Nelson Saúte.