Scarlet chegou.
O nome do mais recente álbum de Doja Cat refere-se tanto a uma cor como a um novo alter ego incorporado por esta. Acontece que uma figura de Doja nua e coberta de sangue com um ar estarrecido tem feito várias aparições nos videoclips dos seus mais recentes singles. A artista replicou também estátuas de cera life-size de Scarlet e espalhou-as por Chicago e Nova Iorque, inclusive num evento promocional do lançamento do álbum.
Segundo a própria, esta figura simboliza um renascimento, algo forçado, da superestrela mundial de 27 anos; os media e os críticos impulsionaram-na criativamente a dar origem a outra parte de si, algo mais agressivo e visceral do que os seus trabalhos anteriores.
Na verdade, as polémicas a seu respeito não se ficam só pelas suas escolhas arrojadas de indumentária ou pela sua presença caótica nas redes sociais pois estendem-se também às suas relações pessoais. Esta última temática parece ser a que mais a frustra, chegando até mesmo a responder directamente a quem se pronuncia em relação ao assunto. Desde o fenómeno de ‘‘Mooo!’’ em 2018, que Doja Cat passou a estar na órbita do olho público, estando sujeita a comentários negativos relativamente a tudo o que faz, e as suas relações amorosas não são excepção. Mais recentemente, Doja encontra-se numa relação com Jeffrey ‘J’ Cyrus, conhecido pelos seus vídeos de 6 segundos na já extinta plataforma Vine e mais recentemente como streamer na plataforma Twitch. Este encontrou-se envolvido em polémicas relativamente a alegações de manipulação e de conduta inapropriada para com algumas raparigas.
As redes sociais desenterraram estas alegações aquando da descoberta da relação de ambos, toldando a percepção que o público tem da artista americana. Doja Cat foi linchada em praça pública, acusada de defender abusadores. Esta foi a gota de água para a rapper, que não tolera o excesso de curiosidade e as contribuições que o público parece ter sobre sua vida pessoal.
Isto levanta uma questão importante: é possível separar a arte do artista?
Na verdade nenhum de nós conhece a artista californiana pessoalmente, portanto tanto quanto sabemos esta até se pode tratar de uma má pessoa com más intenções. Isto é verdade tanto para Doja Cat como para qualquer outro artista! A nossa projecção sobre como um artista é verdadeiramente na sua vida pessoal é obtida através da sua presença pública e através das impressões com que ficamos da sua arte. Mas essas são só projecções.
É lógico que todos nós desejamos que os nossos artistas favoritos sejam boas pessoas e sobretudo pessoas com que nos conseguimos identificar, mas isso não é realista.
Tudo se resume a este facto muitíssimo simplificado: boas pessoas podem fazer má arte e más pessoas podem fazer arte fantástica. Isto não significa que não existam centenas de factores que contribuam para esta premissa. Quem somos nós para sequer decidirmos quem é boa pessoa ou não? Não presumamos saber quem é Doja Cat pessoalmente, mas consumamos a sua arte de modo a tentar conhecer um pouco mais. Vale a pena reforçar que a pessoa é a pessoa e o artista é o artista, moralidades à parte.
E é deveras importante saber distinguir as duas, pelo bem da arte.
Scarlet - o álbum e o ‘‘outro eu’’ de Doja, ensanguentada e despida literalmente e figurativamente - foi trazida ao mundo à força, concebida através da rebeldia e revolta da cantora para com as pessoas que a atacam de forma desmedida. As mesmas pessoas que associam a sua nova imagem mais ousada e obscura com temas relacionados com satanismo e o oculto, sem provas disso.
Todos os artistas têm o direito de se expressar da forma que mais lhes for conveniente e, desde que ninguém seja magoado na sua execução, não há motivo para não o fazer. Doja sente-se desrespeitada com estas opiniões vazias, pois dado o tamanho da sua plataforma a maioria dos ouvintes não se dão ao trabalho de explorar com profundidade onde a artista quer chegar com as suas escolhas estilísticas e verbais. Tudo é automaticamente rejeitado baseado no face value, ou seja, tudo é analisado superficialmente. Isto é comprovado pelos inúmeros threads nas redes sociais e vídeos de vários commentary channels no YouTube que só se dignam a aprofundar a enorme mudança de Doja Cat ao falar das suas interacções com alegados fãs.
Ninguém perde tempo a analisar pormenorizadamente o que é dito nas suas letras, nas suas entrevistas, nem nas histórias construídas nos seus videoclips; ninguém calça os sapatos de uma artista que, ao lançar um novo som com uma visão específica está a colocar-se à mercê das opiniões de todos os que o ouvem. Espera-se empatia do criador da arte mas não se devolve a humanidade na mesma moeda.
Este álbum está dividido em duas partes, segundo a artista. Os temas não foram todos escritos na mesma altura e isso observa-se; é possível entender uma distinção de umas faixas para outras, em que Doja deixa as directas de língua afiada para trás e se foca noutros aspectos positivos da sua vida.
Em ‘‘Paint The Town Red’’ e ‘‘Demons’’, Doja comenta a sua mudança de estilo, como o público a está a receber e as suas controvérsias. Nesta última faixa, Doja Cat acorda o esquecido ‘satanic panic’ dos anos 90 ao aparecer no seu videoclip caracterizada como um demónio, indo de encontro aos comentários de todos os ouvintes por apresentar uma nova imagem que o público geral - e cristãos conservadores - denominam de ‘demoníaca’. Nas faixas, Doja traz à vida quadros que pintou em transmissões online, convertendo-as em cenários (Paint The Town Red) e faz referências cinematográficas a filmes de terror de culto, contando ainda com a participação de Christina Ricci (Demons). É difícil acreditar que toda esta criatividade origine tanta atenção negativa mas, quer de forma positiva ou negativa, todos falam de si e a artista contribui para que o façam.
Na faixa de nome provocador ‘‘Wet Vagina’’, Doja chama à atenção a hipocrisia de todos os que lhe apontam o dedo ao falar dos seus atributos físicos e reafirma a sua posição solidificada na indústria musical, não só como uma artista versátil e com talento mas como alguém famoso e com um status acima da norma. Não se esquecendo de adereçar ainda algumas controvérsias passadas pelo caminho, Cat observa que apesar de ter sido expulsa da ilustre Met Gala de 2023 por fumar, sabe que o seu estilo irreverente e a sua presença fazem de si alguém poderoso.
Doja já não sente que tem de competir com ninguém por esse mesmo motivo. A sua única competição é agora consigo própria. Tratando-se também de uma metamorfose sua, esta fez questão de comunicar aos fãs que este álbum não teria colaborações com ninguém.
Ainda dentro do tema da hipocrisia chegamos a ‘‘Fuck The Girls (FTG)’’ em que a rapper reforça o seu ego de novo, desta vez apontando ela o dedo a todos os que se auto-intitulam de fãs mas que, ora a odeiam e a cancelam, ora a adoram e reverenciam cada movimento seu. Esta faixa serve também como um lembrete para que não tentem deturpar a sua imagem de qualquer forma e que só o que esta dita corresponde à sua verdade. Doja foca-se na sua arte e não tem paciência nem tempo para refutar todas as observações feitas por quem a considera agora chocante devido às referências lascivas e tenebrosas da sua música mais recente. Esta fá-las sem pedir permissão ou desculpa. O clima de desafio e combate continua em ‘‘Ouchies’’ e ‘‘97’’ e Cat relembra que engajarem em conversa com ela para a atacarem nas redes sociais só lhe proporciona mais exposição mediática, contribuindo para que esta obtenha ainda mais sucesso.
‘‘Gun’’ parece ser uma faixa de mudança no álbum, pois é mais descontraída e com um teor mais sexual. O trocadilho é que o termo ‘gun’ (arma) substitui o órgão genital do seu parceiro. Doja deixa-se levar e descreve-lhe o que gosta mais sexualmente.
Dentro de uma dinâmica mais leve temos ainda ‘‘Go Off’’, em que a artista parece referir-se a si própria na terceira pessoa, enaltecendo-se. Esta tem poder, faz o que quer e tanto usa roupa couture como roupa de empresas de fast fashion, aludindo à sua versatilidade e humildade.
Há ainda a ordem para que todos os maldizentes se calem em ‘‘Shutcho’’, afirmando que enquanto estes reclamam, a cantora está feliz com tudo o que tem conseguido. Doja ataca ainda directamente pessoas que se auto-intitulam de cristãs por a atacarem desavergonhadamente no ‘dia do senhor’ (Domingo, dia de missa).
Encontramos no mais recente single de Scarlet o lado mais doce da artista, declarando-se ao seu namorado. Em ‘‘Agora Hills’’, a rapper quer partilhar o seu novo amor a todos os que a vêem independentemente do que estes possam achar. Aliás, esta reforça que faz questão de que a sua nova paixão se habitue à presença dos seus fãs pois não está interessada no que as pessoas possam dizer sobre as suas relações e gosta de provocar reacções ao público.
A sua vida pessoal é exactamente isso; pessoal. Continuamos numa nota romântica com ‘‘Can’t Wait’’ e ‘‘Often’’, pois a artista está apaixonada pelo namorado e mal pode esperar para estar na sua companhia e flertar com ele, mostrando a abertura que este homem desperta em si ao aceitar plenamente todas as partes de Doja. Cat mostra-se mais vulnerável nestas faixas, o que não só é refrescante como mostra que a artista é de facto multifacetada e complexa.
‘‘Love Life’’ é uma carta de gratidão por tudo o que a estrela possui. Esta adora o estado em que a sua vida está e enumera várias ocasiões que a fazem feliz, tais como quando se sente atraente, quando se envolve com o seu namorado, a sua relação honesta e franca com os seus amigos e quando os seus fãs a fazem sentir acolhida em tour e abraçam os seus defeitos. Mais uma vez, esta faixa tem notas muito positivas e boas vibes e em vez de Doja atacar ou se defender, passa à frente e demonstra gratidão e amor por tudo o que conquistou.
Em ‘‘Skull and Bones’’ são adereçados os rumores de que a artista ‘‘vendeu a alma ao diabo’’ afirmando que a única coisa que vendeu são discos e música, pois dentro de si estão só ossos (referenciando o título). Remetendo para outras teorias da conspiração, Doja acredita viver após os seus 27 anos (fazendo referência ao famoso ‘‘clube dos 27’’, uma teoria da conspiração que estigmatiza e padroniza certos músicos célebres que coincidentemente morrem aos 27 anos) e declara que quem intervém deve meter-se na sua vida, nomeadamente os críticos. Cat revela ainda que todo este burburinho sobre si é um resultado de inveja alheia e que Deus não esquecerá isso. Esta confirma o seu talento e o seu foco e o quão abençoada por Deus está, numa nota final que contradiz os rumores anti-cristãos.
O primeiro single do álbum intitulado ‘‘Attention’’ funciona - segundo a artista - mais como um manifesto e uma ode a este seu novo lado do que propriamente uma música para ouvir e repetir (apesar dos seus fãs discordarem e de a faixa entrar efectivamente no álbum). Nesta faixa, Doja usa todas as armas com que está munida de modo a responder às críticas dos media e das opiniões de todas as pessoas com um teclado à frente, usando a cultura das celebridades e as relações parassociais como tópicos principais. A artista só ganha com quem tenta denegrir a sua imagem, garantindo-lhe a ela e a quem se aproveita por acréscimo, mais sucesso mediático. Se ‘‘Attention’’ se resume a uma afirmação, essa afirmação pode ser ‘‘de nada’’.
A penúltima faixa do álbum ‘‘Balut’’ refere-se ao popular prato asiático, que consiste em ovos de pato que contém embriões quase desenvolvidos cozidos. Este prato foi usado como uma metáfora pela artista para alguém que se sente ‘comido vivo’, um sentimento com que esta poderá provavelmente identificar-se agora mais do que nunca.
Na faixa que fecha o álbum ‘‘WYM Freestyle’’, Doja faz questão de dar a última martelada no prego proverbial que é a demonstração do seu talento, com o mesmo bravado e revolta que permeia predominantemente o álbum.
As faixas estão recheadas de rimas, dicas e trocadilhos inteligentes e samples de várias músicas. Doja encapsulou em Scarlet uma mistura de Hip-Hop, R&B e Pop com um cunho muito próprio, um som individual. As samples são colocadas de forma pontual e intencional, espelhando as eclécticas raízes musicais de Doja.
Cat tinha previsto um álbum muito mais lírico e incidente no Rap do que os anteriores, Amala (2018), Hot Pink (2019) e Planet Her (2021), chegando mesmo a difamá-los e a quem os ouviu, intitulando estas obras de ‘‘Pop medíocre’’ e afirmando que só serviram para fazer dinheiro (apesar do single ‘‘Kiss Me More’’ de Planet Her em parceria com SZA lhe ter garantido o Grammy de Pop Duo/Group Performance em 2022).
Isto não fez com que a sua actuação nos MTV Video Music Awards 2023 tivesse menos sucesso. Pelo contrário: mais uma vez, o seu talento, presença e carisma foram inalcançáveis.
O que foi mais curioso na sua performance foi a sua indumentária. Isto porque não foi nada aberrante ou extravagante como o público esperava e é justamente essa a magia de Doja Cat, que segue sempre os seus instintos e não as expectativas de ninguém. A artista fez-se acompanhar de bailarinas vestidas a combinar consigo, usando um conjunto de uma saia e blazer, uma camisa branca e uns sapatos vermelhos, sem esquecer os óculos graduados e uma peruca de cabelo apanhado. Com as suas bailarinas caracterizadas de Scarlet, Doja cantou, rappeou e arrasou, acompanhando sempre a coreografia e prendendo o público. Numa ocasião em que todos esperavam o pior, a artista surpreende ao usar peças de um vestuário business casual, só para mostrar o quão dona de si própria é. Um grande dedo do meio para quem tenta ditar o seu destino e colocá-la numa caixa.
Scarlet está disponível em todas as plataformas de streaming habituais desde dia 22 de Setembro de 2023 e trata-se de uma abordagem mais intensa e masculina, contrastando com o seu som anterior. De outro modo, um dos seus álbuns anteriores intitulado de Hot Pink (que significa rosa-choque) tem uma perspectiva mais Pop e feminina, e Scarlet (escarlate) serve como um impulso na direcção oposta, mas não menos importante ou inspiradora.