Todo homem precisa de uma mãe.
(Zeca Veloso)
O que acontece a um filho quando uma mãe se fecha em si mesma e a demência se instala? Não sendo encontrada ali onde antes fora o lugar mais próximo da origem, quanto resta a (não) dizer? Como suportar e metaforizar tal encontro com o corpo de palavras tão antigas, agora silenciadas? E como ressignificar o biológico em carne viva a não responder como antes fazia um sujeito que ali morava? O jogo contraditório dessas temporalidades e das vozes de mãe e filho é delicadamente enlaçado, contorcido e entretecido por Gabriel Abreu, em Triste não é ao certo a palavra. Sim, não é triste a palavra certa e esse mantra do desencontro se instala em diferentes momentos da narrativa, inscrevendo o impossível da exata nomeação. O campo do sem nome cavalga indomável. Se não triste, então o quê?
Sabe M., triste não é ao certo a palavra. Nunca foi. Minto. Talvez tenha sim sido, em algum momento distante, na ordem lógica dos sentimentos. O choque primeiro. O instante em que se percebe a violência, uma força súbita que nos extirpa a normalidade, a impossibilidade. Um acidente de carro, um assalto, a inesperada presença da morte. No choque não há espaço para nada, apenas um vazio branco.1
O vazio ganha corpo diante do fato de o narrador voltar à casa dos pais para retirar objetos de valor emocional, já que ela será vendida, e encontrar uma caixa de papelão amarelado com uma pequena etiqueta na lateral trazendo as iniciais do nome dela2. Algumas letras são suficientes para abrir as pétalas do enredo. Uma caixa, um filho e o porvir: (...) um diário, centenas de fotografias e oito cartas3. Isso é tudo, e sem nome. À medida em que existe a despedida da mãe que já não há visto que ela sentou-se na sala de estar e trancou-se para sempre.4, constrói-se a descoberta de uma outra mãe que nunca se mostrara ou nunca fora vista. Ela deixa um diário em que escreve como se fosse o próprio filho bebê a narrar e tecer um bordado de cenas dos primórdios do cotidiano infantil, do desenvolvimento físico e emocional do bebê com suposições do que ele estaria sentindo.
Um filho encontra um diário que a mãe manteve durante o seu primeiro ano de vida, um diário no qual escreve na voz do filho recém-nascido. Um filho encontra uma caixa repleta de cartas enviadas à sua mãe, toda uma correspondência no passado. Uma mãe adoece, perde a memória. Uma mãe desaparece. Um filho retorna à casa da infância. Uma família, o presente. Um filho tenta reconstruir a memória. Um filho procura. Um filho precisa escrever sobre sua mãe. Um filho não pode deixá-la sumir. A vontade de eternizá-la.5
É o filho imaginado, dito e narrado por ela em outro tempo que ele tenta recompor a partir de cenas opacas da memória, assoprando uma matéria em flor e recusando a dissolução da imagem que guarda. Isso na mesma intensidade com que lê as descobertas da caixa, que funciona como lugar de (des)encontro em que as vozes da mãe ela mesma e da mãe no lugar do filho jogam com inesperados do que o filho sabia e desconhecia dela. Um fino entroncamento de vozes que se amparam e encerram um sem tempo de presenças e ausência.
Sou eu o protagonista, mas é você quem escreve. Nessa correspondência secreta em que mãe e filho dão voz um ao outro, você evoca minha primeira subjetividade e eu, tua nova identidade materna.6
Páginas de diários, cartas para interlocutores que ele não conhece, fotografias que vão sendo publicadas no romance à medida que a trama avança fazem anteparo à palavra não certa e ao inominável. Mais ainda, se combinam e litigiam com as lembranças que o filho narra na atualidade de uma mãe adoecida.
Você balbucia qualquer coisa e finjo que compreendo. Já de volta na cama, pouso a minha mão na tua e você a acaricia incessantemente num cacoete afetuoso, uma forma de acalmar a mim e a si mesmo. Esse trejeito perdura quando você já não consegue se movimentar ou se alimentar sozinha, quando todo teu corpo se abate e teus ossos despontam, quando por dias tua mente parece se apagar e você fica eternamente perdida em um ponto fixo no travesseiro, fazendo-nos duvidar de que esteja mesmo ali. Mesmo então, você continua ninando minha mão na tua.7
Ora, sabemos com Lacan8 que o trabalho custoso (e sublime) de constituição de um sujeito conta com a presença do outro, vários outros pequenininhos que fizeram ali banhar a corredeira de sons e palavras que envolvem o bebê. O outro que cuida e dá acesso aos sons e sentidos de uma língua e que introduz o Outro, tesouro do código e da linguagem. Disso deriva a máxima de que o sujeito é constituído por palavras que o situaram em uma dada posição, presença primordial de uma estrutura em torno da qual ele poderá se movimentar.
É toda a estrutura da linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente (...) Pela razão primeira de que a linguagem, com sua estrutura, preexiste à entrada de cada sujeito num momento de seu desenvolvimento mental (...) Também o sujeito, se pode parecer servo da linguagem, o é ainda mais de um discurso em cujo movimento universal seu lugar já está inscrito em seu nascimento, nem que seja sob a forma de seu nome próprio.9
Esse primado dá ao inconsciente a estrutura de uma cadeia na qual se articulam significantes (s1 - s2), não quaisquer uns, mas aqueles próprios de cada sujeito no seu encontro faltoso com os outros. Assim, (...) o momento em que o desejo se humaniza é também aquele em que a criança nasce para a linguagem.10. Nascimento que se dá profundamente enraizado pelo/no jogo dos sons descontínuos e depois encadeados da língua. O(s) outro(s), dentre eles a mãe ou quem cumpre a função do cuidado, fazem esse trabalho de embalar, em pacotinhos coloridos, os nomes das coisas que assentam o sujeito em algum canto (aqui vale a polissemia). E isso conta sempre com a equivocidade e a opacidade constitutivas da língua, o que têm consequências no romance em análise.
Contemplo essa imagem desnorteada entre presença e ausência, entre o porvir da minha existência e o indício passado da tua. Sinto o teu olhar, através da câmera, imaginando talvez um dia eu encontraria a fotografia, que um dia eu tentaria decifrar o que você pensava enquanto me carregava dentro de si, enquanto concebia a ideia de teu primeiro filho.11
A partir da fotografia, o sujeito faz contas de imaginar e tentar representar sem, contudo, encontrar exatamente o que procura, nem na caixa, nem na mãe, nem no interlocutor dela. O lusco-fusco da memória é pura perda e tem acesso negado, tocando a beira do impossível. Perda da memória e da história da mãe para si mesma, já que seu saber de si e de suas lembranças foi diluído e apagado; perda da imagem da mãe que o filho sempre teve e que, embora viva, não está mais ali naquele corpo nem naquele encontro, perda do lugar que o filho atribuía a si quando filho daquela mãe.
Teu olhar percorre meu rosto e ele é tudo o que resta. Deixo que você me observe, que encontre meu olhar e fique com ele, comigo. Você tenta em vão arrancar o oxímetro de borracha preso em teu indicador e eu seguro a sua mão com a minha (...) É o início da noite de um domingo. Desde sexta, você está com mais dificuldade de deglutir os alimentos do que o normal. Há, eventualmente, no avanço progressivo e regular da doença, essas pioras bruscas e inesperadas que parecem acelerar todo o processo. O dia em que parou definitivamente de falar. A vez que deixou de se sustentar em pé. Grandes blocos se desprendem e desabam em meio ao teu vagaroso degelo.12
Esse degelo da mãe lentifica as funções vitais e a partida dela, sem se despedir, sem saber de nada. Resta ao filho a tarefa de dizer algo, (...) dar borda, narrar a mãe adentrando seus arquivos é uma estratégia lírica de tornar a mãe possível, continuamente. (...) É o que o personagem busca: erguer a palavra mãe. Com ar, com terra. E com a distância que a saudade sempre impõe.13 E assim o faz, em um encontro de mãos que se amparam e ninam, de olhos que parecem erguer o instante do encontro, ainda que faltoso.
Notas
1 Abreu, G. Triste não é ao certo a palavra. São Paulo. Companhia das Letras, 2023.
2 Abreu, G. Triste não é ao certo a palavra. São Paulo. Companhia das Letras, 2023.
3 Abreu, G. Triste não é ao certo a palavra. São Paulo. Companhia das Letras, 2023.
4 Abreu, G. Triste não é ao certo a palavra. São Paulo. Companhia das Letras, 2023.
5 Abreu, G. Triste não é ao certo a palavra. São Paulo. Companhia das Letras, 2023.
6 Abreu, G. Triste não é ao certo a palavra. São Paulo. Companhia das Letras, 2023.
7 Abreu, G. Triste não é ao certo a palavra. São Paulo. Companhia das Letras, 2023.
8 Lacan, J. (1957). A instância da letra no inconsciente freudiano In: Escritos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1998.
9 Lacan, J. (1957). A instância da letra no inconsciente freudiano In: Escritos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1998.
10 Lacan, J. (1957). A instância da letra no inconsciente freudiano In: Escritos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1998.
11 Abreu, G. Triste não é ao certo a palavra. São Paulo. Companhia das Letras, 2023.
12 Abreu, G. Triste não é ao certo a palavra. São Paulo. Companhia das Letras, 2023.
13 Bei, A. Orelha. In: Abreu, G. Triste não é ao certo a palavra. São Paulo. Companhia das Letras, 2023.