Muitas foram as mulheres que se destacaram na História de Portugal. Poucas foram as que sobreviveram às curvas e contracurvas da memória nacional. É fácil recordar a Padeira de Aljubarrota ou D.ª Leonor de Teles – heroína e vilã nos olhos lusitanos, respetivamente. O trágico fim de D.ª Inês de Castro é-nos cantado por Camões n’Os Lusíadas, enquanto Fernando Pessoa questiona a fertilidade de Filipa de Lencastre. Em comum, estas figuras têm a notoriedade que lhes foi atribuída por uma narrativa nacionalista que, dado o seu enfoque numa sociedade assente numa estratificação sexista, deixou de parte muitas outras personalidades femininas cujos feitos merecem também ser cantados. Segue-se a história de uma dessas figuras que tem de ser reconstituída tendo como base os resquícios de informação que rebolam nas margens da História.

Em janeiro de 1572, nasce em São Miguel, no concelho de Aveiro, Antónia Rodrigues. De qualquer modo, ela cresce durante o domínio filipino em Portugal. A sua família não era abastada, mas a proximidade da Ria e do oceano Atlântico terão contribuído para desenvolver em Antónia um espírito aventureiro muito próprio. Para além disso, é provável que o seu pai, Simão Rodrigues Mareares, um homem do mar, tivesse histórias para partilhar que espicaçassem a curiosidade da pequena Antónia. Talvez por isso a ideia de ser aia de companhia de Inácia, a sua irmã mais velha e casada, em Lisboa, não a tenha cativado tanto como os seus pais desejavam. Ademais, e de acordo com Duarte Nunez do Leão, que em 1610 a inclui na sua Descrição do Reino de Portugal, a vida de Antónia na capital caracterizar-se-ia pela “aspereza de sua irmã & o mao tratamento que lhe daua” (Leão, 1610, p. 148, escrita original).

Assim, Antónia foge, corta os seus cabelos, disfarça-se de marinheiro, e adota o nome de António Rodrigues. Arranja trabalho como grumete numa caravela de trigo com destino a Mazagão, em Marrocos. Presume-se que, a este ponto, Antónia/António teria entre doze e quinze anos.

Aquando da chegada da caravela ao porto da praça portuguesa, descobre-se que o mestre da embarcação havia furtado trigo do carregamento que transportava. António é chamado perante o capitão-mor na qualidade de testemunha, o qual o alista na infantaria do exército local com o intuito de o proteger de possíveis represálias. Graças às suas capacidades e contribuições para a defesa de Mazagão, sabe-se que terá chegado à cavalaria. É assim que Duarte Nunez de Leão descreve a vida de António no exército e a forma como esconde o seu género:

O qual em pouco tempo se fez tam destro nas armas que quando ião a barreira desafiaua aoutros & lhes fazia tanta vantagem que ninguem lhe ganhaua. E nas ruas publicas egremia & todos jogos de armas fazia com tanta graça como se toda a vida as exercitara. Polas quaes partes e por sua branda condição era mui amado de todos os soldados & cada hum procuraua de ser sua camarada. […] Sendo de cauallo se auantajou dos outros na destreza & bomar & ligeireza com que caualgaua do chão: & no commetter aos inimigos nas empresas maiores & de importancia, sépre o Capitão o nomeaua & mandava na dianteira como ao mais destro caualleiro que tinha. E assi se achou em muitas pelejas & encontros onde foram captiuos & mortos muitos Mouros principaes e seus cauallos de q Antonio Rodriguez participaua como o melhor caualleiro (da companhia).

(Leão, pp. 148-49)

António terá, portanto, sido uma figura importante na proteção de Mazagão, tendo inclusive descoberto que os muçulmanos se preparavam para invadir a cidadela durante a noite. São vitórias contra a ameaça mourisca como esta que lhe valerão o cognome de “o Terror dos Mouros.”

Durante este tempo, nem os mouros desconfiam do seu segredo. Mas este estado de arte acaba por ser posto em risco quando a filha de um dos cavaleiros principais de Mazagão, Beatriz de Meneses, se apaixona por ele. António recusa os seus avanços, mas o pai de Beatriz requer ao capitão-mor que interfira a favor da união. Receoso de ser descoberto, ele confessa-se a um membro do clero local. A informação depressa chega aos ouvidos do governador e António é obrigado a voltar à sua vida como donzela. Apesar do escândalo, passa a receber uma tença pelos serviços prestados a Mazagão.

Regressa em 1607 a Lisboa, casada desde 1603 com um camarada de armas com o qual terá tido um filho. Esta criança é nomeada pelo rei D. Filipe II de Portugal “Moço da Câmara Real.” Pouco se sabe do final da vida de Antónia, supondo-se que terá passado uma temporada em Castela após a morte do seu marido. Eventualmente, regressa a Portugal, onde vem a falecer na década de 40.

Esta é assim mais uma vida perdida nas margens de uma História que teima em louvar as mesmas figuras, deixando outras para trás de uma forma arbitrária e, por vezes, injusta. Talvez este motivo da guerreira que é forçada a disfarçar-se de guerreiro para usufruir das vantagens associadas ao sexo oposto tenha sido açambarcado pela Disney com a sua célebre adaptação do conto de Hua Mulan. Não retiro o valor que essa história tem para o povo chinês e para a humanidade em geral. Mas não deixo de me questionar quantas heroínas terão ficado na sombra de Mulan. Daí este pretende ser um pequeno contributo a uma figura igualmente admirável pela força de vontade e coragem demostradas num tempo especialmente opressivo para as mulheres.

Nota: para este texto, optou-se pela manutenção das referências retiradas de Duarte Nunez do Leão tanto quanto possível na sua grafia original.

Sugestões de Leitura

Júnior, J. Plácido, Aqui se conta a incrível vida de Antónia Rodrigues, a amazona de Aveiro, artigo publicado no Jornal Público a 4 de fevereiro de 2018.
Leão, Duarte Nunez de, Descripção do Reino de Portugal, Lisboa. Impresso com licença, por Iorge Rodriguez, 1610.
Natário, Anabela, Antónia Rodrigues, ‘o terror dos mouros’, artigo publicado no Semanário Expresso, a 18 de junho 2018.