Ao percorrer os textos, pode-se facilmente perceber que o sujeito poético usa a antítese e o trocadilho mesclados. Ora, a antítese é uma figura de linguagem que consiste num contraste de palavras ou ideias; e trocadilho é uma figura de linguagem que “consiste num jogo de palavras, ou jogo do equívoco, sendo que o mais comum é utilizar uma palavra recorrendo ao signo de uma outra (…)”.
Na obra em pauta, podemos encontrá-las evidenciadas, com o objetivo de diferenciar as classes sociais, ou seja, retratar as desigualdades sociais. Por exemplo, no poema “uns e outros”:
Uns sentam-se à mesa farta e tomam o pequeno-almoço./ Outros não se sentam, porque é pequeno, o almoço./ Uns, os que se sentam, sorvem./ Outros, os que não se sentam, servem./ Uns que se sentem./ Os outros sentem./ Claro está, uns e outros não se podem sentar à mesma mesa,/ pois são o contraponto uns dos outros. Contra ponto. E dois/ pontos não podem simultaneamente ocupar o mesmo espaço./ Entre uns insurgem-se alguns, afirmam-se uns, mas dos/ outros nenhum se proclama ninguém (…)
(Faife, 2010:87)
Veja-se quando diz, logo na primeira estrofe, “Uns sentam-se à mesa farta e tomam o pequeno-almoço/ Outros não se sentam, porque é pequeno, o almoço” (Faife, 2010:87); o sujeito poético serve-se deste contraste (uns que se sentam e outros que não se sentam), sem, de forma deliberada, identificar as entidades, para trazer esta diferença, que preferimos dizer social, pois, ao afirmar que uns se sentam à mesa farta, e outros não, porque a comida é pouca, com o auxílio do contraste trazido pelos adjectivos “farta” e “pouca”, que qualificam o pequeno-almoço de uns e outros, ajuda a repisar a diferenciação de duas classes: favorecida (a de uns), e a desfavorecida (a de outros). Ou seja, a antítese e o trocadilho, neste poema, concorrem para demonstrar que o imaginário, nesta obra, é construído através da exploração da linguagem conotativa.
O outro texto que explora de sobremaneira estas figuras de estilo é o poema “portanto”, no qual se pode ler:
“(…) a vida é uma cópula na posição do missionário/ uns por cima a fazerem-se aos outros/ outros por baixo a deixarem-se fazer/ por cima por baixo/ para cima para baixo/ uns sobre outros/ sub e sobre/ a subviver ou sobreviver”
(Faife, 2010:91)
Neste texto há também uma tendência a se explorar a antítese e trocadilho para diferenciar as classes (de uns e de outros); em suma, a classe dos que subvivem e a dos que sobrevivem – dos favorecidos e dos desfavorecidos, tal como se aferiu no primeiro texto. Note-se que isto é fácil de perceber também pelo uso frequente do trocadilho, na medida em que ele permite fazer um jogo do dito pelo não dito.
Em geral, a metáfora é uma figura de linguagem que consiste na comparação de duas entidades sem recurso a particulas comparativas; e a hipérbole, uma figura de linguagem que consiste num exagero sobre uma realidade, com um fim específico.
Estou ciente de que a metáfora e a hipérbole, sob o ponto de vista teórico, não apresentam características que lhes permitam agrupar-se, todavia, sob o ponto de vista prático, nesta obra, têm objectivos similares: chamar a atenção do receptor da mensagem – o leitor.
Por um lado, a metáfora, recorrentemente, sagra-se a chamar tal atenção sobre uma realidade específica; por outro, a hipérbole reforça a chamada de atenção e, às vezes, atenua-a, como se de um desvio de foco se tratasse, isso pelo exagero que traduz.
Para este caso, o sujeito poético serve-se dela para chegar ao sofrimento do vendedor, explorando, na maioria dos casos, o seu modus vivendi, ou figuras da classe baixa, desfavorecida: os velhos pedintes, ou, simplesmente, os mendigos.
Evidências que comprovem esta asserção podem ser encontradas em vários textos desta obra, com especial enfoque aos poemas “velhice”, “sacos vazios” e “insecto”. No primeiro, pode-se ler: “velhos não são trapos/ mas trajam farrapos (…)” (Faife, 2010:15).
Aqui, a metáfora pode ser entendida na comparação entre velhos e farrapos, quando assume que os velhos não são trapos, embora farrapos vistam, e que a única coisa que lhes deixa parecer farrapos é a sua condição física, pelo desgaste proporcionado pelos anos de trabalho na juventude. Esta metáfora, logo no princípio do poema, tem o objectivo de chamar a atenção do leitor sobre a necessidade de valorização dos velhos. Na continuidade do poema, pode-se ler:
(…) o corpo pendurado nos ombros/ verga ao peso do fardo dos anos/ é a gravidade cínica que o provoca/ a engravidar a terra com seu túmulo (…)
(Faife, 2010:15)
O que traduz uma hipérbole, mas, neste caso, para reforçar a chamada de atenção que estas figuras traduzem nesta obra.
Termina com uma metáfora, dizendo que “(…) a velhice não é um posto/ é um imposto” (op. cit.), para dar a entender que todos passaremos por ela (daí a sua valorização), o que se pode depreender com o uso da expressão “imposto”, que remete a uma obrigação.
Ora, neste poema, a metáfora e a hipérbole mostram a chamada de atenção e o carácter reforçante a que me refería no início da análise deste poema, sobre as peripécias da sociedade.
No segundo poema para esta análise, “sacos vazios”, podemos encontrar escrito:
No calvário íngreme dos dias/ a dureza da vida subverte o provérbio:/ sacos vazios ficam de pé/ e robustos à vertigem da labuta/ caídos como encher/ o âmago do profundo que somos/ …nos bolsos/ … e no estômago?
(Faife, 2010:8)
Nele, o sujeito poético, logo no princípio, compara os dias em que vive com calvário, o que assumimos ser metáfora de sofrimento, na medida em que a palavra “calvário” nos remete ao cristianismo, quando Jesus fora castigado até à morte. E continua, fazendo perceber que apesar do sofrimento, os sacos vazios, que assumimos serem metáfora da classe baixa, desfavorecida, continuam de pé.
Embora com um pequeno exagero, o que nos remete à hipérbole, o sujeito poético procura fazer entender que tal é feito com o objectivo de se regularizar a situação das partes mais profundas do ser humano: o “bolso” e o “estômago”. Ou seja, à procura de melhores condições de vida.
No terceiro poema, “insecto”, predominado mais pela metáfora do que pela hipérbole, o sujeito poético preocupa-se em chamar a atenção do leitor para o quotidiano dos vendedores informais, a sua luta em adoçar os dias amargos pelos quais passam. Nele, pode-se ler:
Ambulando pelas ruas/ o insecto esgueira-se/ sozinho e frágil/ com pólen/ matéria prima para a vida.
(Faife, 2010:48)
Por usar uma linguagem conotativa, o sujeito poético, às vezes, passa despercebido pelas entrelinhas de alguns poemas; mas, com a análise de algumas figuras de linguagem usadas, compreende-se melhor a intenção poética nesta obra.
Aqui, o insecto é metáfora de vendedor informal, que vende para sobreviver. Nos versos seguintes, percebe-se melhor em que lugar este vendedor faz o seu negócio e a sua motivação, quando diz:
(…) regressa à colmeia/ fortaleza ou dumbanengue/ onde vender é o mel/ que adoça o amargar dos dias.
(Faife, 2010:48)
Há que frisar que colmeia e dumbanengue são o mercado. Para nós, o uso da palavra colmeia é para realçar o tipo de mercado (cheio), uma vez que colmeia se vai referir ao cortiço de abelhas, que, tipicamente, andam em conjunto. A palavra dumbanengue é outra evidência linguística que indica especificamente os mercados típicos de Moçambique, uma vez que é uma expressão do XiChangana (língua bantu falada no sul de Moçambique) que significa mercado informal.
Assim, como disse no início desta secção de análise, a metáfora, recorrentemente, chama a atenção do leitor, embora noutros poemas, especificamente os atrás analisados, se conjugue com a hipérbole, com o objectivo de a atenuar (ou frisar, nalguns casos, as chamadas de atenção).
Assim, embora tenha trazido diferentes formas de representação do real e imaginário (no artigo que antecede este e neste, respectivamente), estes mesclam-se, pois que, na verdade, não existe o real sem o imaginário, e eles constrõem-se a partir do uso da linguagem, representando, assim, denotativamente, o real, e, conotativamente, o imaginário, sustentado por figuras de estilo como antítese, trocadilho, metáfora e/ou metonímia, hipérbole e paradoxo. Entretanto, importa dizer que o real e o imaginário se mesclam inevitavelmente, ou seja, não existe o real sem o imaginário.
Bibliografia
Faife, H. (2010). Poemas em sacos vazios que ficam de pé, Maputo: A2 Design, Lda.
Ceia, Carlos: s.v, E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. De Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, consultado em 03-10-2023.
Reis, C. (1999). O Conhecimento da Literatura (Introdução aos Estudos Literários. 3ªed., Coimbra: Livraria Almedina.
Silva, V. (1984). Teoria da Literatura, 6ªed., Coimbra: Livraria Almedina.
Referências
1 Ceia, Carlos: s.v, E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. De Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, consultado em 03-10-2023.
2 Que se pode observar com o jogo entre “pequeno” e “pequeno-almoço”, “sorvem” e “servem”, “contraponto” e “contra ponto”, “uns” e “alguns”, “alguém” e “ninguém”, entre “resposta” e “ripostam”, entre “tramam” e “tomam”, que se faz no poema em análise.
3 Que assumimos muito importante na obra, na medida em que o seu título faz surgir o título da obra em si: Poemas em sacos vazios que ficam de pé.
4 Do XiChangana: mercado informal.