A fantasia é parte integral do imaginário de um povo, de maneira consciente e inconsciente. Tal imaginário se desenvolve na infância, quando a criança aprende as regras da ordem social em que vive por meio de fábulas, cantigas e tradições. Na medida em que cresce, entretanto, o cotidiano se infiltra em seu comportamento e, o que antes possuía um interesse místico, torna-se uma simples futilidade, secundária à realidade. Neste processo, a fantasia passa do inconsciente, quando a criança verdadeiramente acredita em eventos mágicos e criaturas sobrenaturais, para o consciente, quando o adulto busca sair do terreno do inexplicável com fatos e argumentos puramente científicos.
Durante muito tempo coube somente este papel a tudo que fosse considerado como tema “fantástico”: apenas um rito de passagem para a vida adulta, uma ferramenta de instrução para crianças (a exemplo dos contos narrados no período medieval sobre monstros aterrorizantes para impedirem que os filhos saíssem dos feudos). Mesmo em suas duas transições, do imaginário para a literatura e depois para o cinema, a fantasia e o infantil estavam sempre conectados.
O uso constante da imaginação é uma das principais características do gênero fantasia na literatura e no cinema. Infelizmente, a falta de interpretação deste traço é também uma das causas que contribuem para a associação da fantasia como atributo do universo infanto-juvenil. A visão imaginativa, em uma sociedade enraizada no trabalho massivo, acaba vinculada ao lazer e, por conseguinte, algo somente para crianças.
Alguns críticos podem alegar que a fantasia possui caráter infantil devido aos seus finais felizes. Realmente, a fantasia tende a uma vertente positiva de desfecho, embora o caminho para tal não seja todo positivo. O herói sofre durante a sua jornada e aprende sobre os mais diversos temas mundanos, como a inveja, o medo, a maldade, a tragédia e a violência. A existência do sobrenatural é meramente um estilo narrativo para transportar o espectador, levando-o a transcender os limites daquilo que seria impossível no mundo real. Trata-se de um envolvimento em vários níveis de simbolismo e psicologia para manipular o que é conhecido com o desconhecido, explorando novas realidades.
Um exemplo prático de tal estilo narrativo está nas obras do escritor Britânico Neil Gaiman. Ele utiliza destes conceitos do imaginário, da fantasia e da mitologia para contemplar a criança envelhecida dentro de seus leitores e balancear a emoção infantil com a reflexão adulta. Em grande parte de suas obras, Gaiman retoma a conexão criada entre a fantasia e o infantil. Para ele, a infância é um local de intensa imaginação e criação dos mais variados tipos de tramas complexas, logo, suas obras dialogam com aqueles que estão nesta fase da vida e aqueles que já passaram por ela. As crianças estão interessadas nos elementos mágicos, já os adultos se preocupam com os aspectos sentimentais e indiretos de suas tramas. A reflexão está presente sempre, às vezes codificada, às vezes claramente exposta para os leitores.
Em Coraline (2002), o autor conta a história de uma criança negligenciada pela família que encontra uma outra versão do seu mundo. Uma obra surrealista contada pelo olhar infantil de uma protagonista criança e com temas pertinentes à ela, como o medo do abandono ser maior que o medo da própria morte. Entretanto, não é especificamente voltado para o público infantil apenas.
Outro exemplo é a pequena Lucy, protagonista de Os Lobos Dentro das Paredes (2003). Ela alerta a família sobre os lobos escondidos, mas eles só lhe dão crédito quando sofrem de fato o ataque. Apesar de ser uma história considerada infantil, o autor junta os contos de horror com os contos de fadas com o intuito de discutir temas reais, como a confiança familiar, a visão que se tem de uma criança e a compreensão do externo fora da zona de conforto. A narrativa se desenrola em forma metafórica, mas que auxilia no próprio processo de autoconhecimento do leitor. É sim uma história infantil, mas seu significado vai para além deste rótulo.
Em questões narrativas, as matrizes da literatura infantil e do terror são as mesmas. Logo, Gaiman incita o medo inicial em suas histórias para desconstruí-lo de maneira emocional e, por fim, esperançosa, sendo esta a sua maior e mais repetitiva fórmula. Tudo que é assustador, também é a principal fonte de sabedoria que o personagem e o leitor encontrarão. Esta pode ser considerada a origem literária infantil. E é esta mesma origem que a faz atingir níveis de complexidade narrativa que contribuem para um maior fascínio do gênero fantasia.
Ao compreender a complexidade do infantil, já é possível mover para o segundo tópico de estruturação tanto do gênero, quanto das obras de Neil: o estigma que a fantasia carrega a respeito do escapismo. Gaiman contorna facilmente esta visão restrita da fantasia em seu estilo de escrita, pois se utiliza de metáforas para explicar o real com o irreal. Chamar a fantasia de um simples escapismo é uma visão limitada de todo o potencial presente na base teórica do gênero literário. O escapismo fantástico tem por objetivo subverter a normalidade com as características principais do gênero: a magia e o sobrenatural. Em um primeiro momento, pode parecer incoerente ou ilógico, mas a renúncia a tudo que é fortemente real é o modo que a fantasia tem de abordar o real.
A questão ambígua do gênero é o que produz a crítica quanto ao escapismo. Ao mesmo tempo em que um livro fantasioso discute questões profundas da realidade, este mesmo livro também pode ser visto como um incentivo ao leitor para se perder nas ilusões e esquecer, ainda que por algumas horas, os desafios do mundo em que vive. A fantasia oferece um escapismo não no sentido pejorativo, mas no sentido opcional, pois tudo depende da intenção dos leitores. Se ele deseja de fato analisar a estrutura narrativa presente na base ou se prefere utilizar do caráter fantasioso para apenas aproveitar o filme ou livro, não é problema algum, já que a fantasia oferece ambas as opções, desconstruindo a visão negativa de escapismo unilateral.
A fantasia tem a capacidade de tangenciar as realidades e os complexos da existência humana com o inconsciente dos sonhos. Ela emerge do estranho, da surpresa e encanta pelo desconhecido, pelo diferente e, principalmente, pela sua capacidade de oferecer a escolha ao público. Nada é obrigatório, cabe ao leitor aceitar aquilo que é proposto. É preciso imersão para que a crença e a experiência sejam completas e críveis. Metaforicamente, as histórias são a vida real congeladas no tempo. É dada ao leitor a chance de experimentar outras vidas, enxergar os mesmos dilemas que enfrenta representados por personagens e ultrapassar as medidas de tempo e a profundidade do seu ser, testando a natureza interior e o poder da empatia.
Em O Mistério da Estrela: Stardust (1999) o leitor mergulha na mesma jornada de autoconhecimento de Tristan Thorn, que vai em busca de uma estrela para presentear a mulher que ama e acaba entrando em uma transformação de crescimento de um jovem rapaz para um homem adulto. A divisa do muro é a representação concreta da divisa do real e do fantástico.
Este é o verdadeiro poder do gênero fantasia. Gaiman transporta o espectador não só para uma nova história, mas para uma nova realidade, para uma imersão de mundos. Mesmo que seja uma fantasia, a narrativa existe proveniente de um contexto social e histórico da região em que foi desenvolvida. O sobrenatural e o mágico ainda partem de um lugar comum originário da imaginação. A ação e as decisões dos personagens ganham um impacto muito maior por se tratar de um universo incomum.
Nesta mesma linha de raciocínio, além da questão da complexidade do infantil, das formas de escapismos voluntários e involuntários e da existência do real e do imaginário na escrita de Gaiman, há ainda um dos maiores elementos narrativos de suas obras: a transformação. A estagnação é algo incompatível com a constante mudança nas artes, tanto literárias quanto cinematográficas. Os gêneros são instáveis, de fato, assim como a interpretação daqueles que os consomem. Com a fantasia não é diferente, ela está sujeita a alterações.
Mesmo que esta transformação esteja indissociável do sobrenatural e do mágico no caso da fantasia, Gaiman a utiliza com bases reais, fazendo com que seus personagens passem por todo e qualquer tipo de transformação em busca de seu amadurecimento. Seja com Coraline que, para além do mundo fantasioso da Mãe, entende por razões reais (como o medo e a saudade) que seus pais verdadeiros de fato a amavam. Ou com Tristan, que precisou de um fator sobrenatural como uma estrela caída para amadurecer no seu mundo.
Por fim, uma coisa é clara: o entendimento que Gaiman possui do universo infantil como a natureza mais proeminente no ser humano é a característica que faz com que os leitores sejam tão apaixonados pela fantasia de suas obras.