— Depois é mais uma, se faz favor!
A tarde, lá fora, avançava serenamente, enquanto os raios de sol alaranjados entravam sorrateiros pela janela e criavam um jogo de cores quentes ao balcão.
Encostados ao dito balcão do estabelecimento (que dado o tamanho e o ambiente, oscilava entre os conceitos de tasca e café), eu e um amigo empunhávamos alegremente as cervejas recém-chegadas. Recordo particularmente essa tarde por um episódio particularmente caricato:
Um conterrâneo nosso, já com filhos da nossa idade, criados, entrou no dito ‘café’, os passos meio devaneantes, soprados pelo nosso querido Baco e falou sorridente:
— Um tinto, por favor! - O olhar envergava um brilho meio travesso.
O senhor em causa era pintor e, como tal, não era grande adepto dos preceitos sociais. Desta feita, mesmo sem ser interpelado, falou connosco sobre o assunto que, naquela tarde, pareceu ser apenas uma aleatória escolha do vinho que trazia dentro.
— Oh, rapazes!... - A barba a ficar grisalha tomava-lhe agora o feitio do sorriso, e as suíças oscilavam alegremente.
O meu amigo arqueou-me a sobrancelha e eu virei-me, já pronto para os devaneios do homem. Após quatro custosas tentativas, o homem, já devidamente posicionado ao balcão, pegou na minha garrafa vazia:
— Vocês conseguem compreender que valor artístico pode ter uma garrafa como esta? - Balançou a cabeça parecendo sorver cada curva do objeto. Um breve silêncio. Não soluçou, como fazem os bêbados das outras aldeias nas demais crónicas. Prosseguiu, depois:
— Pensem no humano que decidiu inventá-la assim...as curvas como elas são para serem fáceis agarrar, a escolha do vidro para melhor conter o que queremos que contenha. É uma arte que tem um propósito.
Olhei o meu amigo de soslaio e sorri. Numa terra vinícola como a nossa, estas devaneações aleatórias não nos eram estranhas. O homem prosseguia o seu monólogo:
— E este objeto pode servir para conter líquidos para nós...pode servir como objeto artístico para ser apreciado na sua cor e nas suas curvas que encaixam na nossa mão na perfeição e pode, até, encher se de gasolina, meter-lhe um paninho, e ser atirado contra a polícia.
Soltei um riso abafado.
Só compreendi mais tarde de que árvore este pensamento era fruto.
No ano de 1917, Marcel Duchmap, um pintor da época, envia para uma exposição uma peça de arte que intitulou “A Fonte”. Qual não foi o espanto do júri quando se apercebeu que a obra se tratava de, nada mais, nada menos, que um urinol.
Andava o mundo em plena Primeira Guerra Mundial, e o Senhor pintor Duchamp imerso em questões referentes a loiça sanitária. Mas cá entre nós, não acho nada de novo... sempre achei que a loiça sanitária não tinha a devida valorização!
Ora, hoje em dia, a frase que mais deve ser dita em jantares regados a vinhos finos, quando se menciona alguma arte contemporânea deve ser: “Ah, aquilo é arte? Isso também eu fazia!”
Penso que foi mesmo esse o caminho desbravado por Duchamp. O mesmo caminho que o senhor embriagado da minha terra tentou abrir nas nossas mentes jovens, ainda não preparadas para reflexões meta-artísticas.
Foi então assim que surgiu essa fonte, como um belíssimo berro disruptivo para com as convenções artísticas. Porque a obra, não é, como é fácil erroneamente supor, o urinol, mas sim a ação de o enviar, fora do seu complexo latrinário, para ser exposto numa exposição. A arte reside neste episódio, nessa expressão de revolução, de atentado à lógica racional!
É importante, cada vez mais, lembrar as pessoas, principalmente os senhores donos da razão que trazem canudos de baixo do braço, de que a arte nem sempre tem que ser séria. E que outra coisa expressaria melhor essa não necessidade de seriedade que um magnífico urinol em porcelana?
E é este o ensinamento que, tentaram passar-me num solitário balcão de café rural e que não fui capaz de absorver até há relativamente pouco tempo: a arte está em todo o lado, e, estando ela tão disseminada, precisamos de, por vezes, olhar para as coisas de outro modo.
Temos de ver como a cerâmica dá excelentes mictórios, ver como as garrafas podem saciar a sede, tanto de água, como de liberdade e, até, ver como a loiça se pode empilhar majestosamente numa pia. Vocês deviam ver a minha!
Aliás, ainda antes de abrir o Word onde agora escrevo este texto, ponderei seriamente lavar a loiça, mas pode dizer-se que sou um artista relutante. A pia está à pinha. Mas decidi deixar mais uns tempos, como que em exposição temporária, a torre de babel de pratos sujos e abri uma cerveja para me sentar a escrever isto. Assim, dou mais uma hipótese às pessoas cá de casa para apreciarem a arte que criei ali na cozinha.
Sento-me aqui um bocadinho, ligo a música e escrevo este texto para vocês, brindo com a cerveja - brindo à arte que há no quotidiano, que nos força a aprender que a vida é mais do que lavar loiça: também é colecionar memórias como a que vos conto e celebrar o chinfrim criativo que é a existência.
Oxalá, possamos sempre ver poesia em loiça suja, revolta num urinol, liberdade numa garrafa vazia e sonhos em Words vazios.