Não que outros, embora com tibieza, já não houvessem intuído aquela noção; mas calhou de em princípios do século passado Lucien Lévy-Bruhl divulgá-la com os requisitos indutivos e bibliográficos que lhe confeririam a autoria intelectual: a ideia de que em nossos primórdios a realidade confundia-se com suas representações, que nossa mente não distinguia o real do ilusório.

Entre as evidências a que recorreu para embasar sua tese, ele citou uma das ilustradas cartas do pintor e retratista itinerante George Catlin1, na qual este narra uma de suas viagens pelos frios descampados de Dakota do Norte onde um pele vermelha, consternado com o sumiço dos búfalos que antes infestavam as planícies da bacia do rio Missouri, lhe dissera na quase extinta língua mandan: eu sei que o homem branco pôs muitos deles em seus livros; eu mesmo vi um deles escrevendo essas histórias, e desde então não tivemos mais búfalos.

Talvez por entender que elencar a interpenetração dos sonhos na realidade fosse mais trivial e por isso menos convincente, Lucien deixou de coligir aquele apócrifo relato do jesuíta que cuidou para que seus catecúmenos passassem a se persignar antes de dormir desde a noite em que percebera que um deles sempre se recolhia à sua tenda munido de lança e borduna, ao que os outros caraíbas lhe esclareceram convictos de que era um benfazejo resguardo contra o pesadelo contumaz no qual o adormecido vagueava pela floresta apagada cheio do pavor que lhe inspirava a terrível fera que o ameaçava devorar nos sonhos.

Mais tarde, tão logo a antropologia se academicizasse, aquela premissa seria relegada ao repúdio, a um pérfido e obsoleto eurocentrismo, já que sua ingrata analogia infamava a dileta cultura dos povos nativos. O próprio Lévy-Bruhl renegaria sua terminologia, ainda que mantivesse seu conteúdo. De fato, sem o rigor ético em voga agora, seu livro estampava no frontispício: As Funções Mentais das Sociedades Inferiores. Mas acontece que, se o repaginarmos, podemos também, nós próprios, hoje mesmo, servirmos de evidência ao seu argumento. Ou seja, sua controvérsia não residia no núcleo da questão, mas na curta restrição ética em que todos ainda estávamos inseridos naquela virada de século.

Fora do seu contexto etnológico e de seu então pejorativo viés evolucionário, não é desdouro admitir que ainda trazemos, inconfesso ou desapercebido em sua semântica, aquele mesmo traço da percepção dos antigos índios Cheyenne. Com nossa fé pós-moderna na teoria quântica, na sutileza mágica da força do subconsciente ou no poder de manifestação das palavras, redimimos Lévy-Bruhl. Assim como entendemos a imaginativa desolação do personagem de Catlin por seus inestimáveis búfalos perdidos, porque muitas vezes apenas no imaginário ou em um supramundo é que encontramos consolação para uma realidade absurda ou atroz.

Assim, diante da hipótese de se o que é real, material, se imiscui no mágico ou no ilusório, há de haver a contrapartida de que a realidade esteja prenhe de elementos oníricos ou fantasmagóricos. É emblemático disto o fato de alguns dos primeiros atributos do ethos civilizacional ser justamente o de prescindirmos da metáfora, da catarse ficcional, da arte e da religiosidade. Rompido o encantamento do mundo, precisamos remediá-lo. Talvez, nossa própria constituição ontológica — corpo e alma, mente e espírito — nos imprima esta natureza binária e dicotômica onde a realidade parece parcial ou insuficiente.

Em nossa cultura uma das primeiras menções de que a realidade seria ilusória baseia-se numa experiência equivalente à do nativo que se previne contra o mau pressentimento da besta noturna que o visita em sonhos repetidos: ao despertar, alguém devaneia que a vigília também possa ser um sonho. Um sonho que perdura. Atentos à falácia e à heresia, alguns protestaram que para isso não bastava que fosse prorrogado, teria também de ser um sonho compartilhado por todos. Ao que o cabalista e teósofo do séc. VIII, Deodato de Mussa reiterou que justo por ser participativo é que apreendemos apenas fragmentos deste sonho, demasiado duradouro, perene até, segundo ele, para que o abarque o exíguo e fragmentado curso da vida dos indivíduos2.

A alegoria platônica da caverna, embora trate menos da realidade em si mesma que de sua distorção, em alguma medida também desperta o exame de sua essência. E nele talvez esteja o gérmen do protesto dos niilistas modernos contra o mundo tangível. O que, entretanto, abstraído seu aspecto ético ou político, pode surtir um efeito indesejado: a postulação de uma realidade ainda mais abrangente e iniludível situada em um plano do qual este seria apenas um débil simulacro, como nos êxtases místicos cujos iniciados coincidem em suas descrições acerca de dimensões mais nítidas, exatas e categóricas. Curiosamente, ao desenvolver melhor sua alegoria é que Platão chegaria ao seu famoso mundo das ideias.

De fato, pode ser vão ou insano tentar discutir o instante; contudo, na magnitude do seu todo, o tempo se reveste de algo irreal e vertiginoso. A história, enquanto acúmulo de fatos pregressos dos quais vamos cada vez mais nos distanciando, vai-se reduzindo a um longo cortejo de cíclicos episódios com os quais já não possuímos vínculo. Como em Zoroastro, que na Pérsia pregou que os eventos do mundo não estão dispostos em uma ordem linear, e que, logo, a posição cronológica de um evento em relação a outro dependeria de onde se situa quem os olha na rota circular descrita pelo tempo.

Em Cartago ou em Alexandria, em meados do séc. V d.C., o ilustre Marciano Capela excluiu de sua enciclopédia a arquitetura e a medicina da condição de arte que gozavam até então em seus verbetes, porque, de acordo com ele, seriam dispensáveis em um orbe puramente sutil ou espiritual, o que não se dava com as realmente dignas daquela categoria, como a música e a geometria, por exemplo3. A arte, portanto, estabelece um comércio entre dois mundos; deste lado da fronteira nos é dado manejar os instrumentos que a captam e executam.

O mundo físico, assim, seria o reino da existência assim como o do postulado de sua própria excrescência. Aí, o corpo é nosso ponto de contato com ela, seu táctil e intransigente testemunho. Reafirmam-na as dores, os enfrentamentos, as carestias, os climas, a constância, os ruídos, as cominações, os crepúsculos, as distâncias, os cronômetros, enfim. Ao passo que intimamente a refutam os sonhos, os desvarios, a imaginação, a noção de eternidade, o esquecimento, as parábolas, a esperança, a paternidade, as narcoses, as astrologias e a morte. Assim, os argumentos de ambos os lados residem unicamente em seus próprios domínios.

Nenhum outro fenômeno mais concludente sobre a realidade, porém, do que o movimento. Nele confluem nossos cinco sentidos, a densidade da matéria, a sucessão temporal, a lei de causa e efeito. Contra os que ousaram contestar sua dinâmica, há o curioso caso de Diógenes Laércio, que embora vivesse prostrado, disse provar o movimento simplesmente caminhando. Diógenes desqualificava as teses dos discípulos de Zenon de Eleia4 que por sua vez desdenharam dos pitagóricos para quem os números seriam a chave com que se podia decompor a realidade, uma espécie de código no qual estava cifrado o cosmo.

Acontece que os chamados paradoxos de Zenon, penso eu, nunca foram na verdade uma negação do movimento, mas senão uma sagaz ilustração de que o universo aritmético carecia de imanência, que não coincidia com o da realidade. A matemática equaciona um mundo ideal cujas leis, ao propalarem o infinito e o infinitesimal, não têm que ver com o plano sensível do espaço, das horas e das coisas. Algo além da realidade e sua configuração numerológica seria necessário para interligar os instantes, ocupar os interstícios do espaço e dar sentido ao mundo e a nossas vidas dentro dele. A realidade não basta para explicar-se a si mesma.

Lévy-Bruhl faleceu em Paris na primavera de 1939. Os genéricos búfalos que os homens inscreveram em suas histórias sobrevivem ao pele vermelha que lhes lastimou o extravio; assim como a George Catlin remanesceram suas telas em um provável museu de Dakota do Norte. A teoria que os conjugava caducou; o caraíba a quem ensinaram esconjurar pesadelos com o sinal da cruz evanesceu pouco depois na memória dos seus pósteros; e agora Zenon implica pouco mais que uma resenha biográfica em apêndices sobre abstratas questões aritméticas.

Com eles dissiparam-se a cicatriz de uma distraída queimadura ou de um corte nos dedos, as emoções purgadas, um escalpe tingido de escuro sangue, íntimas derrotas e conquistas, a projeção das sombras e o reflexo nos espelhos, o estrépito dos sapatos no piso de madeira, uma claraboia, o surdo arranhar dos pincéis no linho branco, a manta de pele de búfalo que ficou por devolver a um amigo, o bosque que se converteu em subúrbio, o cinzeiro ainda fumegante, uma descarga de dor no dente do siso, um totem de argila soterrado, a carta inconclusa que se desistiu de enviar rota entre papeis descartados, o ardor do suor nos olhos num meio-dia de brasas, o doce e o amargo, os livros revolvidos deixados para sempre sobre a escrivaninha, e tantas coisas.

Pessoas, sentimentos e sensações que constituíram um passado que nos dá conta de que a realidade persiste sem os indivíduos que a experimentam e duvidam; que nossas vidas é que talvez sejam um sonho breve dentro do qual negamos o real no desespero ou na esperança de não termos sido vãos.

Notas

1 Letters and Notes on the Manners, Customs and Conditions of North American Indians (G. Catlin, 1857).
2 Somnia et Veritas in Vita Brevis Hominum, t. 3º, LXXVIII, Deodatus de Mussa (c. 732 – 801).
3 Cf. As Núpcias de Mercúrio e a Filologia, de Marciano Capela (360 d.C. – 428 d.C.).
4 Segundo a Física, de Aristóteles, Zenon teria enunciado quatro argumentos contra o movimento: o Paradoxo do Estádio, o de Aquiles e a Tartaruga, o da Flecha e o das Filas em Movimento.