Discutir algo como ‘a ascensão da geopolítica europeia’ (subtítulo do livro) em apenas 284 páginas é um exercício forçosamente caracterizado por limitações metodológicas compreensíveis. Essas limitações são, aliás, opções conaturais ao livro, como o Autor referiu num dos seus lançamentos: ele nasce de um conjunto de trabalhos adiados ao longo de anos por força do seu envolvimento na actividade política quotidiana e que, em 2022, tomou forma em muito pouco tempo, sendo redigido na Primavera do ano passado e evitando alguns temas expectáveis por serem objecto de discussão em outras obras recentes (federalismo europeu, p. ex., remetido para Soberania, de 2021). A mais notável dessas opções é a sua própria estrutura: Guerra, Império e Democracia (doravante GID) compõe-se de uma série de capítulos em cronologia regressiva – começa nos nossos dias com o debate sobre o mundo globalizado e termina (cpt VIII) com o momento de nascimento da geopolítica europeia em Atenas, 480 a.C. Esta narrativa é tanto mais original por dispensar conclusão («não gosto de conclusões», disse o autor numa apresentação) e começar por esta opção «estrutural» - palavra tantas vezes abusada na política – permite interpretar muito do que define a obra.
A sequência de GID é lógica nas suas componentes: depois de uma introdução genérica, o primeiro capítulo foca o mundo globalizado de hoje; o segundo, o debate do final do século XX entre Fukuyama e Huntington sobre o que esse mundo iria (deveria) ser; o terceiro capítulo foca as revoluções do século XIX que definiram em enorme medida o século XX; de seguida, um capítulo dedicado à experiência republicana americana (século XVIII); as Descobertas (século XVI) são o momento seguinte; o sexto capítulo detém-se na Queda do Império Romano do Ocidente; o penúltimo, na Democracia imperial ateniense no momento da Guerra do Peloponeso; e, por fim, como já visto, o capítulo final foca o momento fundador da geopolítica especificamente europeia, aquela em que esta se distinguiu do imperialismo asiático, quando as cidades-estado da Hélade triunfaram em Salamina sobre as forças Persas. O argumento opera, portanto, através de uma redução ao essencial, procurando sempre num passado comum a razão de ser de cada elemento definidor da geopolítica europeia. Dir-se-ia ser (termos nossos) arqueologia das ideias políticas, na qual a Roma cristianizada que cai às mãos dos bárbaros teve a sua origem remota em Atenas, sendo que Atenas teve a sua razão de ser na afirmação dos helénicos face aos Persas.
Tal como na súmula aqui feita, desde as primeiras páginas nota-se um estilo (que é muito mais do que uma forma) próprio da instituição a que o autor pertence (Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa), com uma predominância de autores de língua Inglesa, a adesão a teses gerais do tipo do ‘diálogo Atenas-Roma-Jerusalém’ sem grande problematização do que isso possa significar, a relação entre os conceitos políticos e as realidades dos regimes políticos (cf. p. 24, sobre isto). Em GID, contudo, apesar de algumas observações certeiras (p. ex. p. 241/2 e 275/6, sobre Imperialismo), a relação entre os termos do título fica em grande medida por explicitar. Embora possa ser interpretada, de diversos modos, pelo leitor ao longo dos capítulos, a tensão conceptual e histórica entre Democracia e Império nunca é explorada sistematicamente; o que se compreende também – ou levaria o livro para outra extensão ou alterar-lhe-ia, no formato que tem, a natureza, decompondo a argumentação tal como está articulada.
Aqui cabe observar que além do estilo no sentido a que nos referimos acima, temos também o estilo do autor. Cada capítulo tem um «herói» (sic) e o herói do livro é o do capítulo V, o frade Las Casas. Isto confere uma legibilidade a temas que de outro modo pareceriam ao «leitor-médio» algo áridos e remotos, decerto, embora o faça à custa de uma novelização da escrita. O que sai, aliás, reforçado pela estrutura regressiva, que sugere um tom detectivesco, a descobrir ‘pistas’ do pensamento geopolítico europeu em sucessão. Esta particularidade, bem como a elevação da Guerra ao título (sendo que o conceito não é sequer remotamente tão discutido como os outros dois), sugere ainda opções propriamente editoriais – e conjunturais, dada a redação coincidir com o início da invasão russa da Ucrânia – pelo menos na forma final do livro. Na medida em que este estilo, em sentido mais vulgar, define algo, definirá o leitor-alvo de GID: não um público especializado mas o leitor curioso, no limite o aluno de uma licenciatura de ciências sociais e humanas. Neste contexto, os recursos retóricos da escrita, muito marcados por itálicos, citações literárias e adjectivos grandiloquentes não carecem de justificação.
A identidade formal, digamos, do próprio argumento desenvolvido é também marcada por estas circunstâncias. «Geopolítico» é um termo solene mas não muito definido, cabendo por norma a cada autor delimitá-lo consoante o argumento que desenvolve. Como GID não pretende ombrear com os clássicos que cita ou a que alude, de Schmitt a Tucídides, encontramos nele não tanto uma originalidade conceptual quanto uma exposição útil a estudantes e a jornalistas. Se estes se detêm nas minudências que o Autor anota pelo caminho (como a crítica judiciosa que faz ao uso do termos «armadilha de Tucídides», cf. pp. 236-238) é outra questão. Escrito por um economista que se integrou na Politologia, GID lê-se como um ensaio de História das Ideias (Políticas), concatenando fontes clássicas e cristãs, filosóficas e teológicas, de ciências sociais e (em menor medida) jornalísticas. Consegue um equilíbrio muito fluído entre as diversas fontes e nunca se afasta da História como palco daquele debate entre conceitos geopolíticos e realidades de regimes políticos que enforma o conjunto.
Há ausências que podemos estranhar: a de Max Weber na caracterização da Modernidade ou a do Renascimento Carolíngio como mediador entre a Queda de Roma e a Expansão da ‘early modernity’ (Maomé e Carlos Magno dariam um outro capítulo heróico). Mas é justo reconhecer essa eventual estranheza não diminui em nada a tese central do livro, a da especificidade do modo europeu de pensar a política mundial (marcada por um inciso cristão na boa consciência clássica no uso do poder, maxime poder militar) e do seu possível fim no momento presente. Muito embora o diagnóstico terminal não seja categórico, nem, muito menos, formulado no tom ‘Inês é morta’ da vulgata do discurso da crise-do-nosso- tempo.
Um livro subordinado, talvez, a Soberania, dos seus usos e abusos na vida política (2021), ainda assim Guerra, Império e Democracia é um exercício autónomo de reflexão sobre o modo de relacionamento de formas políticas soberanas ao longo dos tempos, numa perspectiva europeia. Uma perspectiva (não autocentrada) cuja relevância mundial ao longo dos último 2500 anos resulta aqui bem clara.