De quantas camadas é feita uma cidade? E uma cidade com mais de 300 anos de idade e que preserva até hoje parte da configuração arquitetônica e urbanística de seu período originário?

Quando, em 1919, Mário de Andrade e outros precursores do movimento moderno no Brasil viajam a Minas Gerais com o propósito de pesquisar e identificar as manifestações culturais, principalmente arquitetônicas genuinamente brasileiras, ou a identidade nacional, tem início a construção dos parâmetros que nortearam a elaboração do Decreto-lei nº25/37, o primeiro instrumento legal de proteção do patrimônio cultural do Brasil. Uma vez que Ouro Preto concentrava aspectos representantes da arquitetura “tradicional” genuinamente brasileira, a cidade esteve entre os seis primeiros tombamentos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Se pensarmos pelo viés da preservação dos aspectos arquitetônicos e urbanísticos o artigo 18 do Decreto-lei nº25/37 dirá que:

As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artísticos Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas, sob pena de multa (...)1

Utilizado nos últimos 86 anos, este instrumento jurídico diz respeito aos bens materiais, que definidos e selecionados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional como representantes da cultura e da identidade nacional, são dignos, portanto, de serem preservados para as futuras gerações.

A compreensão sobre o conceito de preservar o patrimônio cultural deve abranger, além da proteção propriamente dita, a percepção de que determinado objeto foi selecionado e designado como detentor de valores significativos para uma sociedade. O tombamento é apenas um dos instrumentos de preservação e, sozinho, não garante a integridade do bem material, da coisa tombada. Ao longo do tempo outros instrumentos de proteção surgiram, como o registro de bens culturais de natureza imaterial, os inventários, as chancelas.

Em um conjunto arquitetônico e urbanístico de interesse cultural, seus aspectos formais - arquitetônicos e urbanísticos - propriamente ditos - seriam uma camada. Outras camadas, não tão palpáveis, dizem respeito: i) ao ser humano que habita este espaço; ii) ao significado que o ser humano habitante confere a este espaço e ao reconhecimento deste como parte de sua identidade, onde guarda suas memórias e pratica suas tradições.

Não são poucos os centros históricos cuja camada humana vem se esmaecendo ou já não existe. Seja pelo esvaziamento populacional, quando há o deslocamento de polos comerciais ou administrativos para outras partes da cidade mais atraentes ao mercado, restando casarios vazios, abandonados. Seja pela especulação imobiliária que inflaciona o valor dos imóveis até que a população tradicionalmente residente seja “expulsa”, quando ocorre o fenômeno denominado gentrificação e as residências, os comércios de bairro dão lugar a cafés, instituições culturais, hotéis (e outros tipos de locações temporárias e mais rentáveis), geralmente voltados para o turismo. A homogeneidade de uso dos imóveis - bairros integralmente residenciais, comerciais ou institucionais - pode também ser nociva, uma vez que, em alguma parte do dia ou da noite, o local fatalmente ficará vazio, perigoso e inóspito. Todas estas situações são nefastas à camada humana.

Posso dizer por conhecimento de causa que o centro histórico de Ouro Preto é um caso à parte. Ainda, apesar de os preços dos imóveis estarem consideravelmente altos e muitas casas se encontrarem à venda, vazias e fechadas, a camada humana ainda permeia seus becos, casarios e adros. Muitos habitantes são residentes há quase meio século e não pretendem se mudar dali. O turista que vem à Ouro Preto é obrigado a dividir sua estada com as velhinhas voltando da missa, com os estudantes que passam pelas ruas cantando a plenos pulmões na não tão calada da noite, com as bandas civis e procissões que param o trânsito, com os cachorros comunitários, as páscoas e os carnavais.

Eu costumo dizer que o turismo é a cereja do bolo, o que vem depois, por último, o toque final. Ou seja, quando os significados identitários e valores mais profundos da cidade fazem sentido para seus moradores, quando essa cidade for um lugar onde se vive com dignidade e qualidade de vida, estará pronta para receber turistas e não o contrário. Há outros roteiros turísticos como alternativa para gostos por paisagens meramente cenográficas, como Las Vegas, por exemplo.

Meu amigo Lucas Simões é um consagrado artista plástico, que no ano de 2014 foi convidado para fazer um site specific no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães - o MAMAM- na cidade de Recife, estado de Pernambuco. A proposta do site specific é que obras de arte sejam concebidas a partir da vivência do artista em determinado espaço e ambiente. O museu em questão está localizado no centro histórico do Recife, no Pátio São Pedro. Ao chegar, o Lucas se deparou com um espaço urbano vazio, onde parte do casario abrigava mais oito instituições culturais, estando apenas duas em funcionamento, igualmente vazias.

A falta de moradores na região, o clima severamente quente, a aridez do Pátio e os horários de funcionamento dessas instituições - até às 17:00h, de segunda a sexta-feira - não colaboravam para que a população, diariamente frequentadora do entorno comercial, chegasse a estes museus. E então surgiu o questionamento O que expor em um museu que não tem visitas e que a população nem mesmo sabe que existe ali?2

O Lucas já tinha então a sua ideia para o site specific. Com a intenção de chamar a atenção do público para a situação de emergência que se encontrava esse conjunto de instituições, foram instaladas na fachada do MAMAM sirenes luminosas e letreiros eletrônicos funcionando 24 horas por dia. E, em estado de alarme para a deterioração patrimonial e institucional, se deu o diálogo entre o museu e seu entorno naqueles dias. A obra recebeu o nome de Deserto.

A “morte” de uma localidade pode se dar de forma lenta e silenciosa, tornando-a gradativamente hostil e não mais convidativa à permanência das comunidades que ali por muito tempo habitaram. Ou de forma estrondosa, e porque não dizer, violenta, com a implementação de grandes intervenções urbanas, quase que tendenciosamente chamadas de “revitalizadoras” ou “requalificadoras,” em que os moradores são literalmente expulsos.

Quando, após uma expedição no deserto do Saara, um jovem perguntou ao personagem criado pelo escritor Miguel Sousa Tavares:

E o que tem no deserto?, a resposta foi “nada”.3

No Recife, o alarme estratégico do Lucas chamou a atenção para a situação já consumada, onde apenas as edificações contavam silenciosamente histórias de outros tempos.

Urgente se faz a necessidade da criação de políticas públicas voltadas para a camada humana nos núcleos urbanos de interesse cultural. Sobretudo, para a permanência da população original e tradicionalmente residente nestes locais.

Estejamos alertas enquanto ainda há tempo. Para que não seja necessário recorrer às sirenes.

Notas

1 Brasil. Decreto-lei no 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Coletânea de Leis sobre Preservação do Patrimônio, Rio de Janeiro: IPHAN, 2006.
2 Simões, Lucas. Lucas Simões. São Paulo: Grupo Aluga-se, 2019.
3 Tavares, Miguel Sousa. No teu deserto. São Paulo: Folha de São Paulo, 2012.