"Entre os conceitos de artefacto e de simbólico sempre se desenvolveram as mais sérias tendências da arquitectura. Reafirmamos que a produção arquitectónica é o cruzamento destes dois conceitos, sendo o artefacto o núcleo duro e perene, e o simbólico a variável."
(Francisco Barata Fernandes, "Transformação e Permanência na Habitação Portuense. As formas da casa na forma da cidade". FAUP Publicações, 1999, p. 29)
A pretexto das recentes descobertas de estatuária romana, provavelmente pertencente a um templo romano, datado do Séc. I d.C., em Mértola, porto de excelência do Guadiana que ligou durante séculos o Oriente e o Ocidente, a TSF dedicou um dos seus programas “Encontros com o Património1” ao património da cidade e ao acumular de vestígios, sobrepostos em sucessivas camadas temporais. Entre outros, foi convidado do programa o arqueólogo Cláudio Torres, principal responsável e impulsionador do Campo Arqueológico de Mértola (CAM), cuja criação em 1978, procurou desenvolver uma investigação científica multidisciplinar no âmbito das ciências sociais e humanas. Tem como objectivos fomentar o levantamento, estudo e pesquisa do património da região de Mértola e a sua conservação e salvaguarda2.
Um dos aspectos mais interessantes da participação e intervenções de Cláudio Torres no referido programa, a propósito da acumulação de vestígios de várias épocas na cidade e dando como exemplo a Igreja Matriz e as sucessivas adaptações/reformulações que foi sofrendo consoante a fé dominante, prende-se com a ideia de que a ruptura não existiu. Sabe-se hoje que se trata de fenómenos muito mais profundos de continuidade, que o mundo romano continuou sem interrupção no mundo islâmico. Apesar das guerras, da violência e da intolerância, a força da continuidade mantém-se de forma impressionante em todo o lado. No fundo, trata-se mais de conversão do que de ruptura. Ou seja, trata-se de fenómenos de continuidade pela transformação. Para dar força a esta ideia, transpondo-a para o campo da Arquitectura, socorremo-nos de Álvaro Siza, que afirma que "o facto de existir a arquitectura de várias épocas do passado, em pé e em boas condições, é fundamental para a criação de nova arquitectura porque nós trabalhamos no fundo em continuidade. (...) As maiores rupturas na história da arquitectura têm uma componente de continuidade ou retomam rapidamente essa componente"3.
Terá sido essa uma das razões de sucesso da intervenção dirigida por Cláudio Torres em Mértola. A de perceber a necessidade de estabelecer ou restabelecer continuidades, coisa que, de resto, o próprio reconhece quando afirma que o que mais têm encontrado é a presença de permanências e não a presença de invasores, porque o encadeamento histórico é muito mais complexo do que a divisão da historiografia oficial faz supor. E isso tem reflexos evidentes no património edificado. Não fará, portanto, qualquer sentido, num cidade como Mértola, falar-se de repor a linguagem original ou o estilo perfeitamente depurado dos seus monumentos.
Por outro lado, houve um trabalho intencional de aculturação dos técnicos que foram passando por Mértola ao longo dos quase quarenta anos de existência do CAM, porque se percebeu desde logo a importância de se conhecer o contexto social e humano em que o património da cidade foi produzido, tendo em vista a sua valorização e salvaguarda.
Em arquitectura e nas intervenções em património arquitectónico, muitas vezes falta essa capacidade de perceber a necessidade de restabelecer a continuidade que, por uma razão ou outra, se perdeu. Perderemos, porventura, tempo em demasia a garantir que a "nossa" intervenção actual é a última e definitiva, descurando as relações necessárias com as continuidades que as pré-existências apresentam. Para transformar, já que é disso que a Arquitectura trata, é condição obrigatória interpretar em simultâneo, tornando o fluir do tempo evidente e claro. Como refere Alexandre Alves Costa, para ajudar a diminuir a dúvida da concepção, sem nunca a resolver. Porque não temos regras universais de projecto, temos cada caso, que é único nas suas complexidades e contradições.
Para além de Mértola, servem igualmente de ilustração e exemplo a este texto Idanha-a-Velha e Tongobriga, cidades a que atribuímos um especial valor patrimonial e onde construímos sobre o construído. Cidades de cuja História “os homens se apropriaram para continuarem a História, (onde) utilizaram os elementos herdados para revolucionar a própria herança e estabelecer novas relações”4 e a que, recorrentemente, devemos voltar, não por nostalgia de um qualquer passado, mas para podermos olhar o futuro com esperança.
Notas
1 O programa referido, transmitido a 4 de Novembro de 2017, pode ser ouvido aqui.
2 Informação disponível no site do CAM.
3 Álvaro Siza Vieira, "Recuperação e Manutenção", in A Intervenção no Património - Práticas de Conservação e Reabilitação (2002), p. 20.
4 Francisco Barata Fernandes, Transformação e Permanência na Habitação Portuense. As formas da casa na forma da cidade. FAUP Publicações (1999), p. 291.