A celebração do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios (DIMS), definido para o dia 18 de Abril de cada ano, desde 1983, altura em que foi aprovada a sua instituição pela UNESCO e promovido em Portugal pela Direcção Geral do Património e o ICOMOS Portugal, tem como finalidade encorajar as comunidades locais e os indivíduos a considerar a importância e relevância do património cultural na sua vidas, na sua identidade e na comunidade. Pretende igualmente promover a consciência da diversidade e vulnerabilidade desse mesmo património cultural, e dos esforços necessários à sua protecção e conservação. O tema para o DIMS 2017 foi o “Património Cultural e Turismo Sustentável”, entendido como premissa fundamental no contexto da conservação no Século XXI.

Um dos aspectos mais marcantes na conformação do território europeu e que se constitui actualmente como um Património Cultural que deveremos saber proteger, prende-se com sua rede de estradas antigas. George Steiner, no livro A Ideia de Europa, refere, aliás, o pensamento pedestre dos europeus como sendo um dos axiomas que definem essa ideia de Europa, porque foi e é percorrida a pé e isso determina a existência de uma relação essencial entre os europeus e a sua paisagem. Steiner destaca a cadência e sequência do pensamento e sensibilidade europeus que, para o autor, são as de um caminhante, como os peripatéticos gregos, que se deslocavam a pé, de polis em polis, ensinando de forma itinerante1.

É esta itinerância associada à estrada que nos interessa sublinhar e valorizar. Sobretudo pela sobreposição de significados que a sua paisagem acumulou. Da estrada como passagem e lugar de convivência social por excelência, de que fala Joseph Rykwert2, cuja necessidade e vitalidade não pode nem deve ser substituída por formas mais recentes de interacção humana (telefone, internet, filmes, televisão...), dada a intrínseca necessidade que temos em promover encontros casuais como elemento essencial do contacto humano. Foi longo o processo de evolução da estrada, desde a noção de caminho ou rota até à de superfície e objecto físico, que se sedimentou ao longo de milénios. A estrada como instituição, só se torna viável quando interiorizada e aceite como tal por uma dada comunidade.

Os significados vinculam-se culturalmente ao entorno, ao construído, ou ao seu conjunto, e conformam a identidade dos sítios. Ora, um dos objectos de maior significado na estrada são as pontes. Porque estão intrinsecamente relacionadas não apenas com a função da estrada, a que dão continuidade, mas sobretudo, pelo seu vínculo ao meio físico que as rodeia, sejam os acidentes naturais como o relevo e a água, seja a estrutura e traçado do próprio caminho que serve. Para podermos interpretar a relação dos caminhos ou vias com a paisagem é necessário, como refere Miguel Aguiló3, distinguir os sistemas de caminhos pequenos, isolados, das redes de caminhos, estruturadoras de grandes territórios, como a rede de calçadas romanas. Apesar de coexistirem em todo o mundo, estabelecem relações com a paisagem muito distintas. Ao contrário dos caminhos de natureza local, mais flexíveis e centrípetos, as estradas inseridas numa rede de estradas como a romana, caracterizam-se por uma escala mais vasta, pelo ênfase nas funções militares ou comerciais, que estiveram na sua origem. São sistemas “políticos”, na verdadeira acepção da palavra.

Volvidos cerca de dois mil anos da construção desta rede “política” de estradas, permanecem no território as marcas da sua passagem e do conjunto de significados que, por toda a Europa, se foram acumulando, como uma verdadeira pátina do tempo humanizado. Darío Álvarez4 destaca a sobreposição de significados, memórias e tempos para a interpretação das paisagens culturais, que são lugares especiais com capacidade para “abrir” fissuras no espaço e no tempo e constituem-se, dessa forma, como paradigmas da heterotopia do tempo. Através da apropriação de um conceito de Michel Foucault5para as heterotopias, definidas como espaços que têm a propriedade curiosa de se relacionar com todos os outros lugares mas que os contradizem, neutralizam, reinventam e, ao contrário das utopias, são espaços reais, que existem.

Nós não vivemos num vazio, mas sim dentro de um conjunto de relações que conformam os espaços e os tornam irredutíveis. As heterotopias de uma paisagem cultural permitem-nos, por exemplo, perceber a nossa existência sobreposta no mesmo espaço mas num tempo diferente. Porque há uma acumulação de estratos temporais e marcas muito fortes da ocupação humana no território que não se apagam com a perda de determinada função. E é aí que se torna possível romancear uma ponte ou uma estrada. Através da valorização e reinterpretação do significado actual da paisagem patrimonial na actualidade. Como Fernando Távora achava que, a partir de uma porta se poderia escrever um romance, porque devemos considerar tudo para podermos perceber as relações das coisas, só percorrendo a paisagem, caminhando e usando o corpo como veículo e professor, se poderá experimentar os sítios verdadeiramente e reconhecer in loco, as ligações e relações que os próprios monumentos estabelecem com os lugares e o restante património.

Notas

1 George Steiner, A Ideia de Europa, 2004, pp. 28-30.
2 Joseph Rykwert, Imparare dalla strada, Lotus, nº 11, 1976, pp. 139-145.
3 Miguel Aguiló, El Paisaje Construido - Una Aproximación a la Idea de Lugar, 1999, p. 25.
4 Darío Álvarez, a par de Miguel Ángel de la Iglesia, arquitectos, responsáveis pelo projecto ITER PLATA, iniciado em 2010, que tem como finalidade tornar visíveis os vestígios da antiga Via da Prata, estrada romana que ligava as cidades de Mérida e Astorga.
5 Michel Foucault, Des Espace Autres, 1967.