A primeira vez que ouvi falar de Picote, era ainda estudante. Estávamos em 1997 e o trabalho de “Projecto” do quinto ano tinha como propósito reabilitar alguns conjuntos edificados em aldeias do planalto mirandês. Mas, por opção dos responsáveis da disciplina, não fomos a Picote. Lembro-me de ouvir alguns professores mais novos falar em jeito de sussurro acerca da arquitectura das barragens e de outros professores responderem que “aquilo” não era para mostrar aos alunos. E isso, naturalmente, aguçou a curiosidade. O que seria aquilo?
Apenas mais tarde surgiu oportunidade de lá ir. Tinha, entretanto, sido publicado o livro Moderno Escondido, de Michele Cannatà e Fátima Fernandes. A compra e leitura compulsiva do livro tornou evidente que “aquilo” era visita mais do que obrigatória. Não só pela beleza da arquitectura, que se adivinhava nas fotografias e desenhos de cada página, mas pelo carácter algo misterioso da barragem, afinal, a razão de ser de todo o conjunto, do rio no lugar da barragem e de todo o universo meio escondido da arquitectura naquele entorno. Tinha que ir a Picote.
Em 2001, sozinho, fiz a primeira de várias visitas à arquitectura da barragem de Picote. À arquitectura extraordinária e sublime do Barrocal, local escolhido para implantação das várias habitações e equipamentos colectivos que completavam o bairro. Ia à procura de respostas e do encantamento do lugar. Percorri o bairro operário, os edifícios dos correios, padaria, supermercado e escola primária, todos ou quase todos encerrados. Conheci uma senhora que, amavelmente, me abriu as portas da capela e me mostrou todo o seu interior, as peças litúrgicas desenhadas pelo Arquitecto Pádua Ramos e as esculturas de autoria do Escultor Barata Feyo, que descrevia com uma familiaridade desarmante.
Muito orgulhosa e ciente do valor daquela arquitectura, como se fora, ela própria, autora do projecto do edifício, apontava para alguns detalhes, como o sistema de fecho interior das caixilharias de correr em madeira, que dão acesso à nave da capela para quem vem do peristilo. Não tenho sequer palavras para descrever o maravilhamento que um edifício daqueles provoca num jovem arquitecto. Subi depois ao bairro dos engenheiros, onde encontrei as casas, a estalagem e os equipamentos da piscina e zona de recreio abandonados. Tive oportunidade de entrar numa das casas do pessoal dirigente e na estalagem. Tentava, a cada passo, perceber a lógica de organização dos espaços, o significado dos edifícios e absorver o máximo que pudesse. Custava imaginar a época em que aqueles espaços tão bem projectados tinham tido vida e, consequentemente, o estado de abandono dos edifícios afigurava-se incompreensível.
De tudo o que vi nesse primeiro dia, recordo a força do desenho naquela arquitectura, a preocupação/obsessão com o detalhe1, a forma como tudo fazia sentido, porque interligado do ponto de vista conceptual, e a sensibilidade da implantação e localização de todo o conjunto. Da relação entre os volumes construídos e os maciços graníticos. Parecia que ambos, objectos construídos e naturais, tinham sido “pousados” intencionalmente naquele lugar e assim se mantinham em ameno diálogo, sobre a beleza dessa paisagem construída.
Vi o mais que pude, mas não fui capaz de absorver tudo. Era informação a mais para uma visita só. Lembrava-me permanentemente das palavras de Fernando Távora e da sua comoção com Taliesin, que o Mestre dizia ser um conjunto em que era, porventura, difícil distinguir a obra de Deus da obra do Homem. Apesar das distâncias e evidentes diferenças, a arquitectura de Picote apareceu-me igualmente com a força de uma rocha, a beleza de uma flor e a calma de um lago, que ninguém se atreve a questionar. Mas já não é nenhuma criança. Pela arquitectura da barragem passou mais de meio século e a ausência de ocupantes, sobretudo nas habitações, na estalagem, nos edifícios do centro comercial e na escola, tornam a existência do conjunto um pouco estranha e fantasmagórica, porque se perdeu o significado principal da arquitectura. A vida para que foi projectada e que lhe dá razão de ser.
Desde então, voltei várias vezes a Picote. Levei amigos, colegas, família e alunos. Em cada visita, encontrei um novo motivo de sobressalto, de deslumbramento. Só muito recentemente tive oportunidade de visitar a central original, subterrânea e que impressiona não apenas pela beleza do desenho, mas sobretudo pela consciência um pouco aterradora e susceptível de provocar desconforto, de que estamos abaixo da cota da água e dentro de terra. A consciência de que estamos na presença do belo, mas com terror lá dentro, na presença do sublime em arquitectura, de que falou Paulo Varela Gomes na sua última aula, de sabermos que sob a aparência dos objectos, existe um coisa horrível que traz consigo a morte2. Nas barragens, a mensagem futurista concretizou-se construindo as suas próprias catedrais em lugares pouco visíveis, muitas vezes completamente escavadas no subsolo, como é o caso da central da Barragem de Picote3.
Curiosamente, nessas minhas visitas a Picote, nunca tinha parado na aldeia. O destino era sempre o moderno escondido do Barrocal. Talvez por achar que a aldeia não tinha nenhuma particularidade arquitectónica ou patrimonial, que considerasse relevante e justificasse uma paragem. Até que, há algum tempo, soube da existência de um painel de pintura a fresco, escondido por trás do altar da capela do Santo Cristo, em Picote, e da notícia de uma campanha de restauro, promovida pelo Centro de Conservação e Restauro da Diocese de Bragança e conduzida por Joaquim Caetano4, especialista em pintura mural a fresco, com a finalidade de destapar o painel, restaurá-lo e colocá-lo à vista de todos. E isso foi suficiente para justificar nova viagem, nova visita. Afinal, Picote tem um acumular de marcas deixadas pelo homem ao longo do tempo. Desde a inscrição pré-romana do arqueiro da Fraga do Puio, aos vestígios de ocupação romana nas imediações da antiga necrópole, ao painel de frescos dedicados a São João Baptista na Capela do Santo Cristo, à arquitectura da barragem.
Há lugares assim. Capazes de comover pela beleza. Sítios com o seu quê de inexplicável. Num tempo em que tudo parece misturado, em que se diluíram as diferenças entre cidade e meio rural, em que os limites e definições nos aparecem esbatidos, podemos ainda encontrar razões que justifiquem um olhar atento ao passado, que nos ajude a perspectivar e projectar o futuro. Por essa razão, vale a pena voltar a Picote, uma e outra vez, aldeia no planalto mirandês que me tem vindo a cativar o olhar 5ao longo dos anos.
Notas
1 Como referem Michele Cannatà e Fátima Fernandes, “cada projecto é ocasião para repensar e redesenhar tudo: do puxador à cadeira. (...) A construção de Picote constitui para os jovens arquitectos da H.E.D. uma possibilidade de aplicar e verificar um método que concretize o sonho Moderno da colher à cidade.” Michele Cannatà e Fátima Fernandes, Moderno Escondido, Arquitectura das Centrais Hidroeléctricas do Douro 1953-1964. FAUP Publicações (1997), p. 27.
2 A última aula de Paulo Varela Gomes, na Universidade de Coimbra, pode ser ouvida aqui. A sua opinião sobre o sublime em arquitectura pode ser ouvida a partir do minuto 34.
3 Michele Cannatà e Fátima Fernandes, Moderno Escondido, Arquitectura das Centrais Hidroeléctricas do Douro 1953-1964. FAUP Publicações (1997), p. 31.
4 Sobre pinturas murais a fresco no norte de Portugal, recomenda-se vivamente a leitura do livro O Marão e as Oficinas de Pintura Mural nos Séculos XV e XVI, de Joaquim Inácio Caetano, com edição da Aparição em 2001, bem como a sua tese de doutoramento em História na Especialidade de Arte, Património e Restauro, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 2010, sob o título Motivos Decorativos de Estampilha na Pintura a Fresco dos Séculos XV e XVI no Norte de Portugal - Relações entre Pintura Mural e de Cavalete.
5 Referência à frase de Afonso Lopes Vieira referida por Fernando Távora: Olhos que nunca se molham, nada vêem quando olham.