Não é de agora que o vocábulo cidadania faz parte dos discursos em nossas sociedades, mas pouco paramos para pensar sobre nossas atitudes cidadãs. Em um país, colonizado por portugueses, cujas sociedades foram influenciadas, fortemente, em suas onto-epistemologias, pelo cristianismo. Assim, crer que venha a nós o vosso reino seja um axioma é algo inevitável, ainda mais em tempos de tecnologias digitais, fomentadas pelo poder dos algoritmos, favorecendo uma ilusória sensação de que tudo vai chegar até nós.
Aparentemente, as redes sociais podem, instantaneamente, levar ao “cancelamento” de celebridades, subcelebridades ou anônimos que de alguma forma possam ter extrapolado os limites da cidadania e da ética, mas o cotidiano, se bem observado, nos revela dados assustadores, seja aqui ou aí de onde você lê este texto.
Situações corriqueiras que acontecem bem diante dos nossos olhos, seja na fila do mercado, do banheiro, do bar, no uso de vagas reservadas para idosos, pessoas com deficiência e assim por diante, podem nos oferecer um arsenal de ilustrações sobre a cidadania. No entanto, para mim, parece assustador perceber e observar tais circunstâncias em um ambiente que eu tenho que formar futuros profissionais, que deverão promover a conscientização cidadã em seus ofícios e é quando meu mundo “imaginário” e “utópico” desmorona.
Um dia desses, eu fui jantar no restaurante universitário, daqueles que devem atender a comunidade acadêmica e fui surpreendido com um grupo de estudantes de uma profissão de prestígio (reconhecidos pelas vestimentas gravadas com o nome do curso), guardando lugar para colegas que ainda nem haviam chegado. Afinal, guardar lugar é um hábito bastante comum neste lado de cá da linha do Equador, não é mesmo?
Em outras situações, vi os alunos do curso do qual sou professor, usando o elevador exclusivo para pessoas com deficiência ou que estão com algum problema de locomoção, para subir dois lances de escada, me levando sentir um grande desconforto. Será que eles ainda não entenderam que em instituições públicas a manutenção é demorada, depende de uma série de etapas burocráticas e se algo parar de funcionar, serão dias de espera para que o conserto seja realizado?
Há alguns dias, no intervalo entre uma aula e outra, eu procurei um lugar para me sentar no saguão de entrada do prédio onde ministro minhas aulas e me deparei com uma bicicleta elétrica estacionada em frente a um banco e até tirei uma foto. Logo, me perguntei: o que leva uma pessoa a fazer isso? Fiquei tão incomodado que chamei outros professores e funcionários, que estavam por ali, para apreciarem a situação. Dias depois, encontrei uma vigilante patrimonial com quem tenho mais afinidade, mostrei a foto e falei sobre meu descontentamento, ela me disse que sabia de quem era a bicicleta e a pessoa sempre fazia isso para usar a tomada e carregar a bateria, mas avisaria seus colegas para não deixarem isso acontecer novamente.
Avisar ou alertar sobre isso não é minha função, nem mesmo da vigilante. Trata-se apenas de um exemplo do não exercício da cidadania em benefício do interesse individual, reflexo de uma sociedade maculada, maltratada e que tem se tornado cada vez mais egoísta. Há uma geração e outras por vir cujos elementos constituintes da cidadania e ética estão cada vez mais minados por ilusórias reproduções do irreal nas redes sociais, convergindo para sociedades extremamente insensíveis e confusas.
Cidadania é um exercício diário, requer sensibilidade, atenção, cuidado e acolhimento. Não podemos apenas reproduzir discursos sobre ela, mas precisamos nos atentar e advertir quem está ao nosso redor, caso contrário, contribuiremos para um naufrágio da humanidade, fortalecido por algoritmos, desejos e egos.