Podemos dizer que, nestes tempos que correm, há pessoas que vivem toda a vida sem terem de ir ao focinho a alguém, o que é, por si só, um avanço civilizacional espantoso. Mas, como dizem os anglófonos, “shit happens”. Sem pudores ou falsos moralismos, vamos aqui explicar como resolver as coisas à chapada.
É através de máximas como a que está no subtítulo deste texto que os mestres das artes de combate condensam e transmitem o seu saber aos pupilos. Daí que fique bem começar este curso urbano de defesa pessoal assim, com classe e tradição. Mas na selva que é esta nossa sociedade, onde, apesar de tudo, ainda impera a lei do mais forte, importa, para sobreviver, deixarmo-nos de lérias e aceitar o facto de já ninguém ter tempo ou paciência para metáforas e insinuações. Há que ser prático, preciso, direto. E uma coisa é certa: em regra, o mais forte não é o mais musculoso ou o mais ágil - é o mais corajoso. Desde que não esteja fisicamente inválido, naturalmente. O poder de um indivíduo avalia-se a partir da sua capacidade de decidir e adaptar-se, na sua habilidade para avaliar, escolher e agir.
Ser corajoso é ter o tal coração audaz. E a primeira pergunta que um aluno deste curso-urbano-de-defesa-pessoal deve fazer é: serei corajoso? E se não for, poderei tornar-me num ser corajoso? Ora, sem coragem não se faz nada, temos de ser corajosos a todo o instante. Está cientificamente provado, todavia, que a maneira mais fácil de ser corajoso é não ter consciência de se estar a ser corajoso. Por isso, a primeira lição deste curso-urbano-de-defesa-pessoal é: não queiras saber se és corajoso, não ligues a isso, faz o que tens e mantém uma atitude reivindicativa e voluntariosa.
Primeira lição: A Pisadela. O encanto da agressão subtil. Já dizia o outro: “O melhor ataque é aquele que o inimigo não vê”
Não obstante o estigma que a dá como mero acessório ou manobra de diversão, a pisadela é, em si, uma ótima técnica de defesa pessoal, uma pérola na arte da pancadaria. Muita gente a desvaloriza ao ponto de não a considerar uma verdadeira agressão, mas um simples erro, descuido, um gesto desastrado. Porém, essa é a sua vantagem – consagra-a como o ataque dissimulado por excelência. Não só é de difícil defesa como, por regra, está imune a posteriores retaliações. A sua utilidade e versatilidade, por estes motivos, são incomparáveis.
Pisar o dedo grande de um pé é extremamente doloroso para o dono desse dedo. Qualquer cidadão já o saberá, de certeza já foi vítima de uma agressão destas (nem percebeu que aquele tipo que estava à sua frente na fila dos correios o tinha agredido, pois não? Também foi feio ter estado aquele tempo todo a soprar-lhe ao ouvido a canção que não lhe saía da cabeça! Contaminou-o com um refrão “pimba” e ele vingou-se. Agora já é tarde para retaliar, esqueça...). Por outro lado, é uma agressão malévola, que deixa sequelas imprevisíveis. A dor que provoca é muda e insidiosa, sobe por todo o corpo, desperta todo o tipo de más reações, que permanecem, corroendo. Podendo ser utilizada como arma declarada, num gesto hostil assumido, em substituição, por exemplo, de uma bofetada (a cidadã que ousou esbofetear o vadio do seu ex-namorado, se lhe tivesse pisado o pé não teria recebido na volta a bofetada dele, duas vezes mais forte que a sua, que lhe deixou a cabeça a zoar durante o resto da tarde...), a sua maior eficácia verifica-se quando assumimos a postura do sonsinho(a).
Tomemos um caso prático. Os arrumadores de carros (parasitas na sua maioria) são um flagelo que já todos conhecemos e que se dedicam descaradamente à extorsão. Ora, os maneios velados com que o arrumador se serve para nos ameaçar com um risco no carro se não lhe dermos algum dinheiro é facilmente debelado desta forma: o cidadão sai do carro, tranca-o, vira as costas ao arrumador (como em qualquer outra técnica é necessária a tal coragem), mete a mão no bolso das calças, dando a entender que vai tirar uma moeda, e espera que o agressor se aproxime o suficiente (ele aproximar-se-á, não há que duvidar).
Quando sentir o seu cheiro, enquanto diz: “Ó pá, não tenho trocos” (mesmo que tenha), roda o corpo, recuando de encontro ao do arrumador, de forma a chocar com calcanhar calçado do seu pé que procede ao recuo, não com o solo, mas mesmo em cima da ponta do dedo maior do bandido (a boa pisadela é a que floresce na pontinha do dedão). Há que pisá-lo sem piedade (a ausência de piedade é outra questão que se poderá debater mais tarde, a pedido) e fazer rodar o calcanhar. Deve-se agir com naturalidade e com um forjado mau jeito, deve-se parecer desastrado. De preferência, em podendo, há que aproveitar e dar um empurrãozinho ao indivíduo, sempre como se fosse sem querer, de forma a esticar (separar) a falange distal da falange medial do dito dedão.
Depois disto o cidadão deve dizer, por exemplo: “Oh caramba! Foi sem querer...” e gastar 1 (um) segundo da vida (não mais) pedindo hipocritamente desculpas pelo “acidente”, prometendo compensações, mais tarde, quando voltar. E é tudo. É seguro que o salteador irá de imediato absorver uma avalanche de sensações desagradáveis acumuladas ao longo de uma existência falhada como a dele, que relacionarão de forma abrupta memórias e angústias passadas, crises existências agudas, etc., tudo deflagrado por aquela dor. O tipo vai embora, deprimido e, provavelmente, o cidadão não mais lhe porá a vista em cima e livrará as ruas da cidade de um chato. Simples.
Próxima lição (que será presencial e em data a anunciar via fax): “O murro enquanto uma afirmação ontológica.”