O Desvio Coletivo é um grupo brasileiro que desenvolve intervenções e performances urbanas baseado na cidade de São Paulo, Brasil, e atua na fronteira entre as artes urbana, da performance e visuais.
O coletivo foi criado em dezembro de 2011 nascido de encontros entre professores(as) e alunos(as) dos cursos de arte visuais e artes cênicas ligados a USP (Universidade de São Paulo) e da UNESP (Universidade Estadual Paulista). Eles se reuniram com o intuito de pesquisar a performance da arte na teoria e na prática.
“O Desvio Coletivo nasceu em um período em que se colhia os frutos dos investimentos que foram realizados em políticas socioculturais. Somos um grupo ativista e por isso nunca deixamos de criticar quem ocupa o poder, pois, mesmo em uma época em que o Ministério da Cultura tinha políticas públicas voltadas para a cultura infinitamente maiores, democráticas e melhores do que temos hoje, ainda assim sempre achávamos que dava para ser melhor”, diz a diretora artística Priscilla Toscano.
A principal característica dos projetos do grupo é a criação de intervenções artísticas em diferentes espaços, gerando “ilhas de desordem”efêmeras de natureza poética crítica e com profundas provocações.
“Tudo é arte na, para e com a cidade”, diz Leandro Brasilio, diretor de produção.
A partir dessa disposição coletiva, Pulsão, espetáculo de teatro performático, colocou o grupo no circuito artístico. Foi esse trabalho que organizou os integrantes como grupo, dividindo funções e responsabilidades.
Uma curiosidade é que Cegos, trabalho que se tornou referência, foi criado para ser uma video performance que seria exibida durante o espetáculo. No entanto, a própria cidade reagiu ao trabalho, concedendo-lhe vida própria, no dia seguinte estava na capa de um dos principais jornais do país.
Priscilla e Leandro conversaram com a WSI Magazine sobre o coletivo e a próxima performance: Mamil(a)s.
O grupo foi criado há 10 anos, quais foram as mudanças que vocês, como artistas/ativistas, perceberam na sociedade nesses últimos anos? E como elas os influenciaram a “traduzir” nosso tempo? Diria: um “pouco obscuro”, principalmente com ataques constantes aos direitos humanos e democracia?
Leandro: Nesses 10 anos de coletivo, podemos destacar um marco muito importante da nossa trajetória, que é o processo de impeachment de 2016.
Até aquele momento, havia certa segurança jurídica no desenvolvimento de atividades no espaço urbano; nós tínhamos certeza de que uma performance na rua no máximo seria interrompida pela polícia, mas que nada muito sério aconteceria.
Havia um entendimento coletivo de que éramos artistas no exercício da nossa liberdade de expressão.
Após o impeachment, percebemos uma mudança drástica na rua que passou a ser ambiente de total insegurança jurídica em relação a nossa liberdade como um todo. Um aspecto importante que gostaria de destacar é que a partir desse momento, o medo deixou de figurar apenas da figura do policial, que sabemos ser um agente do Estado dotado de poder, passamos a ter medo de sermos atacados por qualquer pessoa. Esse sentimento de medo foi se acirrando ao longo de todo o processo do impeachment e só aumentou desde então.
É uma insegurança total, um medo quase geral. Isso é muito impactante para quem desenvolve projetos para o espaço urbano, pois a estar na rua é a razão da existência do coletivo.
Ao mesmo tempo, esse medo que sentimos acaba se tornando combustível para mantermos a nossa disputa pelo lócus de resistência política, que é a rua.
Mostra que a rua é também espaço de revolta e não apenas de consumo, é a maneira que encontramos de contrapor um discurso nazifascista que atualmente governa o Brasil.
Quando olhamos para a conjunta artística como um todo, vimos que essa insegurança que sentimos na rua migrou para o ambiente privado, como é o caso de museus e teatros.
Não raro é sair notícias de artistas e ativistas que foram censurados por todo o país, com distorções de sentido grosseiras por parte do Estado, algumas até mesmo sem fundamento, apenas por mera liberalidade.
É algo muito estarrecedor, estamos sendo governados por uma milícia que atua tão somente em benefício próprio, cegos para a maior parcela dos brasileiros e brasileiras, que estão revirando latas de lixo em um alimento em um país como o Brasil.
São situações como essas que atravessam a nossa garganta e nos faz criar obras artísticas com apelo social. Agora, se formos considerar a nossa bagagem de circulação (viajamos para 23 Estados brasileiros, além dos EUA, Europa, Ásia e África), temos que ressaltar que a principal mudança que percebemos a partir das experiências de vida que chegaram até nós, é a expansão da desigualdade pelo mundo.
A base de Cegos, que é o projeto que nos faz circular pelo mundo é convidar a cada integrante é se fazer a seguinte pergunta ‘qual é a cegueira da sua cidade?’, os problemas do capitalismo é algo que sempre vem atrelado a essa reflexão. O mundo foi tremendamente explorado, as pessoas conseguiram transformar quase tudo em dinheiro, ainda assim a pobreza só cresce no mundo.
Priscilla: Assistimos as manifestações das jornadas de junho/julho de 2013 com um misto de sentimento de empolgação no início e depois angústia no decorrer desse processo que passou a ser cooptado pela extrema direita, evoluiu para a concretização do golpe de 2016 e consequente eleição do Bolsonaro, nos arremessando ao abismo que vivemos hoje.
A performance Cegos, por exemplo, foi permeada por essas transformações na política brasileira, uma vez que nasce em 2012 e no dia seguinte é capa do jornal Folha de São Paulo onde na mesma página lia-se manchete do escândalo do mensalão. Indiretamente a imprensa brasileira já associou a imagem dessa performance a diferentes acontecimentos.
Os “executivos de lama”, como foi chamado diversas vezes, foram associados a escândalos de corrupção, a tragédia envolvendo a Vale do Rio Doce, aos golpistas que conseguiram derrubar uma presidenta democraticamente eleita sem que houvesse nenhuma prova de crime e, mais recentemente, ao crescente fascismo bolsonarista.
Foi fazendo a performance Cegos que entendemos que o grande fascínio dela é deixar que seja permeada pelo contexto político, ao mesmo tempo que é uma obra poética, construída pela imagem e pelo corpo sem fala, passível de diferentes leituras. Foi muito significativo realizar Cegos em 2016 em Brasília, exatamente no primeiro dia de votação do impeachment no senado.
Nessa ocasião os participantes decidiram que uma das ações seria rasgar a constituição na frente do congresso nacional e percorrer a praça dos Três Poderes com o braço erguido em alusão ao gesto fascista . Outro exemplo é a performance Máfia que também realizamos em 2016 em reposta ao golpe que estava em curso.
Durante essa performance, houve um momento que defequei na imagem do então deputado Jair Bolsonaro que havia há poucos dias elogiado o principal torturador do regime da ditadura militar.
Naquele dia Bolsonaro deveria ter saído algemado do congresso. Mas ele não saiu. Pelo contrário, utilizou-se dessa crueldade para fazer campanha e conseguiu votos de pessoas que nunca se chocaram com as atrocidades declaradas por ele, mas com o fato de haver uma mulher defecando na rua.
Já falei sobre esse acontecimento em outras entrevistas, é um assunto longo, pois fui vítima do terrorismo das milícias digitais e sofri ataques muito violentos. Mas aqui acho que o que cabe é o exemplo de como nossas performances conseguem de uma forma muito simples permear o imaginário político e provocar discussões.
Vocês percorreram vários países do mundo, vocês poderiam contar algumas reações/situações de algumas performances?
Leandro: Em geral os trabalhos do Desvio são obras abertas, que podem remeter a diferentes leituras. Obviamente que isso é uma opção consciente nossa, para, de alguma forma, furar a bolha de pessoas que em geral se interessam por uma atividade artística na rua.
Gostamos muito de intervir na cidade, aparecer em uma rua sem que ninguém esperasse. Somos muito interessados nesse choque, no que pode passar na cabeça das pessoas quando interagem com o nosso trabalho.
Como a Priscilla citou e que gosto muito de destacar foi a apresentação de Cegos em Brasília, que foi realizada no dia da votação do impeachment no Senado Federal. Por si só esse é um dia que entrou para a história do Brasil, o que fez com que essa experiência se tornasse inesquecível.
Nosso trajeto se iniciaria pela Praças dos Três Poderes, foi isso que havíamos combinado com todos os participantes. Momentos antes da performance iniciar, durante a montagem, soubemos que a polícia de Brasília não tinha autorizado a nossa “apresentação”, pois, devido ao impeachment, não era possível realizar atividades de quaisquer natureza.
Contrariando a censura imposta, seguimos com o nosso objetivo, burlamos o sistema de segurança montado pela polícia (algo que não precisou de muito esforço, pois fomos para o bosque que fica atrás da Praça e subimos a rampa a pé mesmo).
A polícia que nos esperava na parte superior, ao se deparar com um coro de mais de 60 pessoas completamente argiladas rapidamente tentou nos “enquadrar”.
Sou advogado e meu argumento foi desconstruir a idéia do policial, que informava que nenhuma manifestação, protestos e muito menos apresentações estavam permitidas naquele local.
Diante do meu argumento de que aquilo não era nem manifestação, protesto ou apresentações, ele me perguntou, portanto, o que era aquilo.
Minha resposta foi “pessoas caminhando em câmera lenta no espaço urbano”. Argumentei que não havia ilegalidade em caminha por aqui, até porque se assim o fosse, eu e ele estaríamos cometendo o mesmo crime que todos. O agente ficou desnorteado, questionando ao seu superior, via rádio, em como agir.
Eu gosto muito dessa passagem, pois mostra justamente o que a arte é capaz de borrar os conceitos pré-estabelecidos presentes na cidade. Se pensarmos que ele era o agente do Estado, com poder para impedir aquele trabalho, inclusive com o uso de força física se fosse o caso, ficou literalmente desarmado.
Acompanhou a atividade até fim, sempre à espreita, mas respeitando o poder da arte. Priscilla: Foi com a performance Cegos que conseguimos experimentar inúmeras situações fora do Brasil. É sempre uma enorme satisfação poder realizar um trabalho artístico em um espaço diferente e com pessoas diferentes.
Foi uma surpresa estar em Barcelona e mesmo com recursos escassos conseguir a adesão de mais de 50 pessoas para compor o coro.
O mesmo aconteceu em nossa passagem por Ansan (Coréia do Sul) e Taipei (Taiwan) onde tivemos muita gente interessada em participar.
Eu nunca havia imaginado que um dia estaria performando na Ásia, em locais tão distantes da minha realidade, ministrando oficina de performance e tendo a adesão de pessoas de uma cultura tão diferente da minha.
Na ilha de Penang, na Malásia, me deparei com a primeira mulher a performar Cegos de véu. Em 2012 quando fiz os primeiros experimentos com argila nos figurinos jamais imaginava que um dia cobriria o véu de uma mulher muçulmana com essa argila.
Nossa passagem por Funchal, na Ilha da Madeira, também foi maravilhosa pois ali fizemos parceria com o grupo “Dançando com a Diferença” e pela primeira vez tivemos um coro onde pessoas portadoras de necessidades especiais puderam performar conosco, inclusive um homem portador de deficiência visual.
Outra alegria foi representar o Brasil no Festival D’Aurillac que é o maior festival de artes de rua da Europa. Mas uma situação que me marcou muito foi a censura que sofremos em Paris quando a polícia exigiu que interrompêssemos a performance no meio do trajeto.
Em Cegos não há palavras, tudo é expresso por mímica e gestos corporais simples diante de edifícios que são símbolos de poder, e nessa ocasião estava nítido o incômodo causado nos policiais que vieram até a mim com ordem para encerrar. Pediram meu passaporte, exigiram o fim da performance, nos escoltaram até o local da desmontagem onde só ali tive meu documento devolvido.
Outro momento muito significativo foi a nossa última apresentação internacional em 2019 em Bruxelas, a primeira no contexto do governo Bolsonaro.
Essa apresentação foi dedicada a denunciar os escândalos das queimadas na Amazônia. Fiz a performance vestida de terno e gravata, coberta de argila, usando a faixa presidencial, carregando uma serra elétrica real, ligada e ensurdecedora à frente de outros performers de maioria belga, também sujos de argila segurando serrotes e bandeiras do Brasil queimadas diante de uma grande faixa verde amarela onde se podia ler Fuck Amazonia, let’s make money.
Durante as oficinas me vi por diversas vezes com dificuldade para explicar aos belgas como foi que deixamos acontecer um governo fascista no Brasil.
E mesmo sentindo satisfação por estar ali em um festival de prestígio podendo mostrar meu trabalho artístico e fazendo dele uma denúncia desse desgoverno e da tragédia das queimadas, também senti vergonha por ser de um país onde o maior cargo de liderança política é motivo de chacota internacional.
Falando sobre a próxima performance do Desvio Coletivo. O corpo feminino é muitas vezes idealizado, usado e até mesmo banido em diferentes sociedades, como surgiu a idéia para MAMIL(a)S?
Priscilla: A vontade em realizar uma performance como MAMIL(a)S vem sobretudo de minha orientação política, poética, que é feminista.
Diversos motivos me levaram ao feminismo, mas acho que o mais significativo foi o fato de, aos nove anos de idade passar a ser órfã de pai. E não ter um pai em um mundo onde normalizou-se que mulheres sejam “protegidas” e controladas por homens, te coloca em situações nas quais você se vê mais exposta e frágil, o que fez com que desde muito cedo eu percebesse que teria que me “defender” em um “nível de esperteza” e maturidade que as outras meninas ao meu redor não experimentaram.
Ao mesmo tempo, a perda precoce do meu pai, me fez crescer sob um constante discurso de minha mãe que frequentemente dizia que se meu pai estivesse vivo eu não teria a liberdade para fazer as coisas que eu fazia: não sairia com as minhas amigas, não teria tido os namorados que tive, não usaria as roupas que eu gostava de usar, não teria frequentado as oficinas de teatro que era a coisa que eu mais amava.
Acho que crescer sob esse contexto me levou a estar disponível aos diversos chamamentos feministas que passei a ter contato a partir do momento que entrei na universidade até os dias de hoje.
Ingressei na universidade pública mesmo tendo estudado a vida inteira na escola pública. E só quem vive no Brasil sabe do gigantesco obstáculo implicado nisso. E foi o feminismo que me levou a ter consciência de classe e entender que a maior parte daquilo que não conquistei não foi por falta de merecimento ou “talento”, mas sim pelo profundo abismo social que nos cerca e que tem na escola pública seu maior laboratório de reprodução.
Mas falando especificamente sobre a vontade em fazer uma performance na qual nossos mamilos seriam o eixo principal da estética, isso com certeza vem de experiências pessoais.
Por conta das viagens internacionais com o Desvio Coletivo, tive o privilégio em poder conhecer praias nas quais o topless não é proibido. Sendo brasileira e feminista, não tenho como ignorar minha frustração em voltar para meu país e saber que aqui não posso gozar da mesma oportunidade de escolha.
Outro fato é que eu adoro carnaval e vivo na cidade de São Paulo que atualmente tem um dos maiores carnavais de rua do país. Me lembro que em 2013 fui ao bloco Acadêmicos do Baixo Augusta usando apenas uma minissaia, com os seios à mostra onde eu cobria apenas os mamilos com o pastie. O pastie é um acessório comum no meu armário por causa das performances burlescas que faço ocasionalmente. Aconteceu que no meio do agito do bloco eu perdi os pasties. Tinha um sutiã guardado comigo, mas ao observar que, ao meu redor, havia diversos corpos de homens que da cintura para cima estavam desnudos, eu optei por não usar.
Pensei comigo: “Por quê esses corpos por serem ditos masculinos possuem um privilégio que a mim não é dado apenas por eu ter nascido com uma vagina e possuir um corpo dito feminino?”.
Naquele dia experimentei uma liberdade difícil de mensurar em palavras, pois vai muito além de ter as “tetas balançando” livres à luz do dia na cidade em um contexto de lazer.
A partir desse carnaval passei a ir em todos os blocos totalmente nua da cintura para cima. Faço questão. E me enfio assim na “muvuca” de blocos gigantes como o Tarado Ni Você e o Acadêmicos Baixo Augusta. Não vou dizer que todas minhas experiências foram tranquilas, pois mesmo sob a permissividade do carnaval precisa sim ter muita coragem para estar com os seios totalmente desnudos em um contexto de machismo opressor que nos permeia, mas com certeza é relativamente mais fácil.
O que me leva a pensar na hipocrisia chancelada pela sociedade do consumo que, seja através das musas do carnaval ou através da exploração do corpo da mulher para se vender de tudo um pouco, fez com que a nudez de nossos corpos fosse sempre relativizada a favor da máquina capitalista.
Os anos 90 foram marcados pela hiper sexualização que a televisão fez ao corpo da mulher em programas vespertinos dominicais que tinham a “família” como público-alvo.
Seios desnudos foram normalizados em diferentes contextos de apelo ao consumo sem causar nenhum choque. É cruel e revoltante perceber que a mesma permissividade não existe quando mulheres optam por expor seus seios para reivindicarem direitos.
Por que o corpo da mulher incomoda tanto quando ele age sob própria vontade e autonomia e não incomoda quando está a serviço da exploração do consumo?
São essas algumas das provocações que me fez pensar em MAMIL(a)S. Em 2018 falei dessa idéia para algumas pessoas do curso de performance e intervenção urbana que ministrei na SP Escola de Teatro, e em um dos nossos últimos encontros, toparam fazer um breve experimento nas ruas do centro, no entorno da escola. Percebi que essa performance, em coro, tem muita potência. Agora, três anos depois, vamos comprovar.
Leandro: Mesmo eu não sendo mulher, a minha formação em Direito me proporcionou ter um grau de reflexão social que fosse além das minhas características pessoais. Me tornei um operador do direito em um momento político totalmente diferente do que o que vivemos hoje, naquele contexto havia a ascensão social de uma camada importante da sociedade brasileira, as políticas de acesso à universidade possibilitaram que filhos e filhas de pobres, como é o meu caso – sou filho de motorista e dona de casa ingressasse na universidade e, portanto, alcançasse mais espaço de fala e disputa na sociedade como um todo.
Impossível chegar em um espaço como esse sem carregar as lutas das pessoas que sempre fizeram parte da minha vida da existência como parâmetro. Dito isso, atrelei minha expertise jurídica à experiência de vida da Priscilla, transformando a ideia em projeto. A partir da noção de que a lei é geral e abstrata, ou seja, deve ser aplicada igualmente para todos e todas, inclusive com garantia constitucional, foi que o nosso objetivo artístico foi sendo alcançado, que é de borrar a noção de corpo feminino e masculino.
Isso, obviamente, vem da minha prática jurídica, ocasião em que de fato vejo o corpo da mulher ser criminalizado, enquanto ao corpo do homem é dado um privilégio que não está positivado em lugar nenhum, mas existe.
Sendo assim, passamos a considerar que esse projeto tinha um potencial que vai além da lógica de que as mulheres querem ter o direito mostra os peitos, como os homens os tem.
Com MAMIL(a)S queremos reforçar a desigualdade reservada ao corpo da mulher perante o Estado. É um projeto que utiliza um recorte específico dos seios para levantar a pauta da igualdade.
Todos somos iguais perante a lei, o Estado deve aplicar as leis sem distinção de qualquer natureza. O projeto ainda está muito no início, mas nosso objetivo é fazer com que pessoas se unam a nós nessa disputa do simbólico, deixando claro que todos os corpos são iguais, o que quero dizer com isso é que queremos que a mulher comum, o homem comum, adolescentes, jovens enfim, todas e todos, utilizem seus corpos como instrumento poético, e político, para além da função produtiva que é esperada pelo capitalismo.
O corpo do homem é importante nesse processo a medida em que queremos causar essa confusão sobre o que é um corpo dito “masculino” e um corpo dito “feminino”. Se a gente conseguir fazer que os agentes do Estado olhem para nossos corpos, ao menos por poucos instantes, como iguais, a semente já estará plantada.
Em Londres temos anualmente o World Naked Bike Ride que é um protesto contra a dependência global do petróleo, como o corpo pode ser agente de mudança de mentalidade da sociedade?
Leandro: Desde que nascemos somos praticamente adestrados pelo capitalismo sobre qual é ou qual deve ser a função do nosso corpo.
A todo momento somos cobrados de posturas que temos que seguir, comportamentos que temos que adotar para sermos socialmente aceitos.
Um corpo errante possui uma força política de negar a própria engrenagem do sistema. Para tentar ilustrar o que estou tentando falar, vou usar o exemplo de uma parlamentar amamentando durante suas atividades profissionais no Congresso Nacional (deputada federal pelo Rio de Janeiro Talíria Petrone (Psol)). Esse é um exemplo sobre a importância da presença do corpo.
De outro viés, eu posso dar o exemplo de uma atividade, seja um seminário, uma palestra, enfim, o nome pouco importante, sobre mulheres ou indígenas, sem a presença corporal de nenhum deles. Aqui a ausência do corpo fica latente e, sem sombra de dúvidas, nos faz refletir sobre política. A força política do corpo é mais potente do que qualquer discurso que possa ser produzido. Vivemos em uma sociedade que está disputando território e isso tem a ver com acesso e acesso tem a ver com corpo.
Acessar espaços é mais importante do que qualquer política. Meu corpo de homem negro, gay e periférico numa turma de estudantes de direito, um curso considerado como tradicional para a sociedade brasileira, é político. É a partir da minha presença, do meu acesso a determinados lugares que as políticas públicas vão mudando de cara.
O racismo nos mostra todos os dias as consequências de falta de representatividade. Quando passamos a ocupar os lugares, principalmente os de poder, as mudanças sociais são inevitáveis, o nosso corpo é política.
Com MAMIL(a)S queremos acreditar que a humanidade caminha para um grau de elevação em que algum momento dirá apenas corpo, pouco importando se é algo dito “masculino” ou “feminino”.
Nós somos artistas, realmente acreditamos que isso pode acontecer e é por esse motivo que o corpo é muito importante na estrutura das nossas criações. Não conseguimos dissociar corpo de política. Para nós os dois são uma única coisa. Priscilla: Na imensidão desse mundo o corpo é aquilo que de fato temos de mais concreto, no sentido de ser real e palpável. Sem o corpo o que somos? É essa materialidade que nos dá a certeza de que existimos. É a potência desse corpo que nos move.
É através de nossos corpos que praticamos a vida e tudo que nela está: a cultura, a política, a religiosidade, a sociedade, os padrões e os costumes. Sendo assim, um mundo ideal seria aquele em que todos os corpos possam ter a chance de ser, ocupar, desejar e se expressar.
No entanto, quando olhamos para determinados padrões de normatização do corpo e da vida percebemos que esse ideal muitas vezes é frustrado. Isso acontece toda vez que corpos fora do padrão são colocados à margem da sociedade.
O corpo preto, trans, LGBTQI+, indígena, o corpo portador de necessidades especiais... enfim... aquilo que muitos autores vão chamar de “outro”. O “outro” é tudo que não se encaixa no centro do padrão. E isso passa por relações de poder.
Quem define o que é o padrão? Quem vai dizer o que é normal? É através do movimento que esses corpos marginalizados fazem para ocupar espaços de poder, fala e escuta que mudanças começam a ser colocadas em curso. Quantas conquistas foram alcançadas pelas mulheres somente depois que passaram a ter maior representatividade na política, ocupando cadeiras no legislativo, judiciário e executivo?
O mesmo se aplica ao movimento negro, trans, indígena, etc... E também vale para a arte. Quantas mudanças na forma de produzir arte foram provocadas quando as minorias políticas passaram a ser propositoras de novas estéticas e não apenas exploradas enquanto força de trabalho ou objeto de consumo?
As mulheres sempre foram exploradas por artistas homens e pelo mercado da arte em geral. Se aprendemos alguma coisa com as Guerrilla Girls é que o nu feminino é muito bem-vindo e numeroso nos museus quando é retratado por homens, mas esse mesmo esforço em colocar mulheres em grande quantidade dentro do sistema da arte não é verdade quando são as mulheres as autoras e propõem as obras. Portanto, pensar uma performance que discute o tabu de mostrar seios em espaço público é uma forma de provocar discussões, criar novas possibilidades de comportamento, atingir padrões de costumes arraigados e, portanto, é sim uma forma de fazer política.
A política afeta o corpo? Como?
Leandro: A política se faz presente no corpo. Quem já teve a terrível experiência de visitar um presídio no Brasil consegue ter uma ideia do que estou falando. Nós temos ali uma representação corpórea do que o Estado decidiu criminalizar. Obviamente que não estou aqui fazendo juízo de valor sobre a conduta individual de cada pessoa ali dentro, quero dizer que num país como o Brasil, com corrupção sistêmica, o Estado optou por escolher o corpo negro como um corpo que deve ser penalizado.
Fazendo uma conta por baixo, sem pesquisar sobre o assunto, é muito possível que o prejuízo financeiro de toda as pessoas de um presídio seja ainda menor do que uma esquema de corrupção operado por um governo corrupto. Ou seja, escolhas políticas criam uma estrutura de pensamento que faz com que alguns corpos sejam considerados passíveis de punição, enquanto outros não. Esse é apenas um exemplo prático, de algo que é possível ver com os próprios corpos.
Como os outros trabalhos de vocês, MAMIL(a)S percorrerá outras cidades?
Leandro: Sim, essa é a nossa maior vontade. Queremos circular com esse trabalho e fazer com que pessoas de todas as partes do mundo, com ou sem vivência artística, tenham a experiência de performar no espaço urbano, vivendo essa estranheza que é desviar do seu cotidiano, dando aos seus corpos um sentido poético e político.
O trabalho está nascendo, essa será a nossa primeira apresentação, queremos que seja uma experiência muito gratificante para quem decidir participar, uma brecha onde seja possível ser poesia para o mundo.
Priscilla: A idéia é construir para MAMIL(a)S a mesma trajetória que construímos com a performance Cegos e Matrimônios. Vamos percorrer diferentes cidades com o intuito de divulgar a proposta, abrir inscrições a todos interessados, sejam pessoas com experiência nas artes ou não, e realizar oficinas de performance para preparar esses grupos para a ação.
A metodologia do Desvio Coletivo é fazer do encontro um acontecimento performático em si. Sou licenciada em Artes/Teatro e essa formação me trouxe ferramentas muito validas na condução desses processos.
O fato de eu ter uma licenciatura faz com que recursos como didática, psicologia e integração da coletividade estejam sempre permeando minhas decisões artísticas.
O Desvio Coletivo não existe sem a nossa maior jóia que é a metodologia processual desenvolvida nesses 10 anos de vivências. E nossa segunda maior jóia é a cidade.
Pensamos, criamos, produzimos e ensinamos pela e para a cidade. O espaço público é o grande regente de nossas ações. Pensá-lo e ocupá-lo é condição sine qua non de nossa metodologia. Aglutinar pessoas ao redor do mundo criando espaços de fala, escuta e experiência é a essência do Desvio Coletivo. É fazer de cada performance um novo Desvio Coletivo pelos caminhos por onde passarmos.
Como as pessoas podem participar do Desvio Coletivo? Quantas pessoas participarão do MAMIL(a)S?
Leandro: Nós trabalhos com arte colaborativa. Em praticamente todos os nossos trabalhos as pessoas são convidadas a saírem da posição passiva e assumir um lugar de protagonismo, nos contando suas histórias e experiências de vidas, conferindo ao trabalho um sentido local e global ao mesmo tempo.
Gostamos de nos considerar uma rede, pois a partir de uma experiência conosco, algumas pessoas descobrem que podem dispôr de seus corpos de uma maneira diferente do que o capitalismo exige.
Para isso, sempre realizamos um workshop prévio, apresentando o que é performance e intervenção urbana, mostramos referências de artistas de várias partes do mundo que também trabalham com essa estética e, por fim, fazemos um treinamento prático, para criar confiança na ida para a rua.
Dito isso, nós fornecemos os mecanismos para que aquela experiência seja a primeira de muitas, pois abrimos o nosso processo para que todos contribuam e criem. Já tivemos notícias de outros coletivos que se formaram após uma experiência conosco.
É muito gratificante saber que nosso trabalho rendeu frutos, que há mais e mais pessoas dispostas a desviar o sentido atribuído aos seus corpos por um sistema que só visa o lucro, em detrimento de tudo.
Para MAMIL(a)S haverá um número limitado de pessoas, pois será a nossa primeira apresentação após dois anos parados e por conta da pandemia não queremos colocar ninguém em risco, a atividade acontece toda no espaço urbano, mas há uma montagem e uma desmontagem que precisa ser feita em um espaço fechado. Abriremos 20 vagas, mas nas próximas apresentações adoraríamos performar com 50, 100 pessoas.