A inveja está na raiz de quase toda violência. Ela cega pessoas. É um sentimento de defesa contra o medo e contra a fraqueza. É uma resposta fácil sobre meu fracasso iluminado pela luz alheia. O sentimento está contido na narração do primeiro homicídio. Deus convida Caim ao conhecimento: “Saiba que o pecado o ameaça à porta; ele deseja conquistá-lo, mas você deve dominá- lo” (Gn. 4,7). A ideia é boa: se você tiver consciência, não jogará sua angústia sobre o outro. A lição é dura: matar o irmão é mais fácil do que pensar sobre si...

(Leandro Karnal)

De fato, pensar sobre si, dirigir o olhar para nosso mundo interno, fazer um exercício de introspecção, ter uma visão ampla e ao mesmo tempo profunda de si é uma tarefa bastante difícil, visto que nos obriga a entrar em contato com nosso lado sombrio, aquilo que nós mais renegamos: nossa pequenez, nossos medos e inseguranças, nossas feiuras. Admitir sentimentos negativos tais como a inveja, o ciúme, sentimentos de insuficiência e menos-valia e até mesmo o ódio por outra pessoa (supostamente porque ela põe em evidência e maximiza nossos pontos fracos), é altamente desconfortável e até mesmo insuportável para nosso autoconceito e nossos princípios cristãos. O Facebook está abarrotado de pessoas lindas e maravilhosas, onde a vaidade é a pedra de toque que faz com que todos se esmerem na busca da melhor foto para ser exibida a uma comunidade de olhares estupefatos e vorazes. Vivemos em um mundo de aparências e nosso lado fútil nunca esteve tão em alta e as redes sociais mais do que vieram a calhar para dar vazão às inocuidades humanas. Todos (ou quase todos) adoram exibir suas selfies e se observar através da câmera do seu celular, mas nos esquivamos quando se trata de olhar para a face mais obscura de nossa alma e estamos dispostos a destruir aquele que, tal qual um espelho atrevido, reflete de relance a nossa própria imagem, e assim nos faz ver o que não queremos.

O mecanismo de defesa do ego da projeção talvez seja um dos mais utilizados pelo ser humano e ao mesmo tempo um dos mais difíceis de lidar, pois ao atribuir a outra pessoa nossos próprios conteúdos renegados, não os reconhecemos como sendo nossos, e, em assim agindo, lançamos para fora e ainda sobre as costas de outra pessoa, tudo que nos causa desconforto e mal- estar. Trata-se de uma artimanha aparentemente muito eficiente, pois nos assegura a ilusão da trapaça perfeita, já que ao mesmo tempo em que nos livra de nossos fantasmas, propicia aplacar nossos sentimentos de ódio e desejo de vingança sobre a outra pessoa ao depositar nosso ‘lixo’ sobre ela. Todavia, em nossa rigidez psíquica, nunca estivemos tão distantes de nós mesmos e da consciência de quem verdadeiramente somos.

Segundo Klein & Riviere (1975), é fácil verificar que a crença de que outras pessoas que possuem mais do que nós o adquiriram roubando-nos, embora tão ilógica, é surpreendentemente apaziguadora, pois lança a responsabilidade por sentimentos de pobreza e inutilidade sobre outras pessoas e traz consigo a absolvição de toda culpa, voracidade ou egoísmo para com eles, pois eles são a causa de nós ‘não prestarmos no mundo’ (p. 47).

São todos artifícios utilizados pelo ser humano para dissimular seus sentimentos e emoções e esquivar-se de se debruçar sobre a sua própria verdade. Como bem disse Leandro Karnal, o ser humano é capaz de cometer um assassinato quando se deixa dominar pelas poderosas forças de seu lado sombrio que nem ele mesmo sabe que tem, entre elas a inveja, ao invés de se confrontar consigo mesmo.

Referente à inveja, a mesma parte de um desejo não realizado seguido da constatação de que algum outro possui o que não podemos ter, fato que desperta o ódio pela outra pessoa e, por conseguinte, o desejo de tentar destruí-la.

As autoras Klein & Riviere acima citadas nos explicam ainda que emoções hostis se relacionam com o fato de que pessoas que as experimentam estão descontentes e insatisfeitas com sua sorte ou com sua situação. Quer se trate de alguma coisa necessária à vida ou de algum prazer que não conseguem alcançar, experimentam uma sensação de perda. Assim, um desejo insatisfeito pode, se suficientemente intenso, provocar em nós igual sensação de perda e sofrimento, despertando com isso, agressividade (p. 19).

A melhor maneira de resolver a questão não é, entretanto, ‘tapando o sol com a peneira’, ludibriando a nós mesmos. A psicanálise já nos ensina que ao tentarmos nos livrar de algum conteúdo que seja nosso, o mesmo invariavelmente retorna para nós em novo formato e através de uma nova via.

Neste caso, o autoconhecimento - o conhecimento que um indivíduo tem sobre si mesmo - é sempre bem-vindo e necessário. A prática de se conhecer melhor faz com que uma pessoa tenha controle sobre suas emoções, já que tem mais consciência de si, de suas necessidades, de seus alcances e limites, o que impede que cometa ações inapropriadas e desproporcionais ao estímulo.

Diante do acima exposto, ao se aventurar na empreitada do autoconhecimento, além do espírito do explorador no bom sentido da palavra, recomenda-se uma certa ‘prontidão’ para o que der e vier. Isto é, apresentar uma atitude de abertura que pressupõe que o que quer que encontremos nas profundezas de nossa alma, antes de descartar e dizer: “Não, isso não é meu!” ou “Não, isso não me serve!”, que examinemos primeiro utilizando nossos cinco sentidos para melhor conhecer e apreender a natureza do ‘achado’: observar sua consistência, quais as cores que possui, de que maneira aquilo nos toca ou faz sentido na nossa concepção das coisas e da vida.

Também ajuda bastante no processo de autoanálise, se conseguirmos desligar o botão da crítica e da censura de si, já que estes dois elementos impedem ou atrapalham a elaboração de conteúdos negativos. Lembrando que em nossa condição humana, somos seres carregados de imperfeições. Aceitar nossas contradições e imperfeições alivia nossa alma e desencadeia um estado de relaxamento psíquico, que facilita a ampliação de nosso campo de consciência sobre quem verdadeiramente somos.

O autoconhecimento também pode ser entendido como uma investigação de si mesmo. Ele envolve o uso da autoconsciência e o desenvolvimento da autoimagem. Também pode ser um projeto ético quando o que se busca é a realização de algo que leve a pessoa a ser mestre de si mesma e, consequentemente, um ser humano melhor.

O famoso conhece-te a ti mesmo de que falava Sócrates na Antiguidade Clássica é um processo trabalhoso e para a vida toda, pois à medida que vivemos mais e mais camadas vão sendo desveladas sobre nós mesmos e nossa mais profunda e verdadeira natureza. À medida que adquirimos mais conhecimento novo sobre nossa personalidade, um novo processo de elaboração se inicia, pois o elemento novo que veio à tona precisa agregar-se ao todo já existente de maneira harmônica e consistente.

É fato que, se tomamos a sério a empreitada do autoconhecimento, em todos os dias de nossa vida estaremos suando a camisa na tentativa de responder a famosa pergunta: “Quem sou Eu?” Podemos escrever, pintar, desenhar, cantar, dançar as respostas que encontrarmos. São inúmeras as possibilidades. A prática do autoconhecimento se faz por meio da introspecção e da observação de si mesmo no que diz respeito aos nossos pensamentos, sentimentos e ações, e na implementação de novos e melhores hábitos de vida.

Ativar o ‘observador interno’ é como ligar as antenas de nossa psique que vão estar sempre nos sinalizando quando algo estranho e/ou incômodo pairar no campo de nossa consciência.

Esta postura, muito além de um dogma filosófico ou um desafio particular de quem se submete à psicoterapia, muito irá nos beneficiar em nosso dia a dia para lidar com as responsabilidades da vida e com a vida em sociedade. À guisa de hipótese, nos dias de hoje, se soubesse de suas fraquezas e de sua capacidade de superação de si mesmo, Caim não precisaria mais matar Abel, já que o grande fantasma que nos atemoriza e ameaça não está no outro, mas em nós mesmos. Nosso verdadeiro grande desafio é sermos melhores hoje do que fomos ontem.

Referências

Klein, M. & Riviere, J. – Amor, Ódio e Reparação. As emoções básicas do homem do ponto de vista psicanalítico. 2. Ed. Rio de Janeiro, Imago Editora;São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1975. 160 p.