Quando afirmo, no trabalho psicoterápico, que se o problema do outro lhe atinge, o problema é seu, muitos podem pensar em solidariedade. Mas na realidade, pensar que o problema do outro lhe atinge é um questionamento à atitude neurótica de culpar os outros e justificar as próprias problemáticas, angustias e frustrações como sendo causadas, ditadas e provocadas pelo outro.
Atitudes solidárias também podem ser explicadas pelo fato de ser atingido pelos problemas do outro, mas essa atitude de solidariedade é gerada por uma constatação da necessidade do outro, o foco da constatação é o outro, bem diferente do que ocorre quando se atribui ao outro o núcleo da própria dificuldade, da própria problemática.
As diferenças nas atitudes de solidariedade, empatia, raiva, atribuição de culpa, medo, por exemplo, são explicadas pelas contextualizações, pelas estruturas relacionais. No contexto de disponibilidade, perceber o outro, o semelhante, gera encontro. Nos contextos autorreferenciados, nos quais se é o centro do mundo determina-se desejos e comportamentos reduzindo-os à contingência e as atitudes são geradas pelas próprias necessidades e frustrações.
Nessas estruturas o outro é o disparador de raiva, medo, inveja, ganância, atitudes comprometidas com resultados, justificativas para as próprias incapacidades, frustrações e medos. Nos relacionamentos afetivos, nos relacionamentos familiares é muito comum encontrar opressor e oprimido, vítima e algoz. Essas caracterizações, esses posicionamentos geram culpados, omissos e angustiados. Esses padrões são visíveis e frequentemente impostos: não há como responsabilizar quem apanha, quem é vitimado caso não se questione acomodação, ajustes e barganhas com o que/quem vitimiza.
Nas dinâmicas relacionais, nas vivências psicológicas, estar ajustado a quem desconsidera, humilha e atrapalha, geralmente é uma imposição da sobrevivência. Este não ter saída resulta do reducionismo às próprias necessidades. Negando toda e qualquer possibilidade, reduzido à sobrevivência, o ser humano se desumaniza. Essa alienação o transforma em objeto, daí se sentir receptáculo, alvo de tudo que nele é jogado; é sempre a vítima e assim consegue se eximir de responsabilidade e de autonomia. A perda de autonomia é percebida por ele como ponto de justificativa, é o lucro final: a culpa é do outro, do sistema, da sociedade, da família, da escola, enfim, dos outros. Nessas situações, é muito difícil perceber que se o problema do outro o afeta, o problema é seu, seja por compactuar, seja por conviver.
Participação e omissão geram soluções tanto quanto podem problematizar. Ser desconsiderado cria questionamentos, denúncias, tanto quanto apassiva, coopta. A diversidade de atitudes vai definir submissão, passividade, fará perceber limites, regras impostas, arbitrárias e preconceituosas, assim como a possibilidade de transformá-las, assumindo as próprias motivações e identidade. Sempre que o problema do outro lhe atinge, infelicita, preocupa ou culpa, o problema é seu. Perceber esse processo, questionar as ambiguidades e certezas é libertador, pois ter os problemas no próprio controle, ao dispor, é o que permite mudança reestruturação, libertação.
Frequentemente, diante de preconceitos como discriminação por ser negro/a, por ser gordo/a, por ser imigrante fica quase que despropositado dizer que se o problema do outro o atinge, o problema é seu. Mas esse despropósito desaparece quando são questionados valores, quando é levantada a aceitação da própria identidade, da própria aparência e história, autonomia e segurança.
Ser massacrado/abatido ou seviciado em situações repentinas não possibilita vivências de justificativas dadas pela própria pessoa que é vítima das mesmas. É enfático e apodítico o abuso, a agressão, a maldade. Essas situações são enfrentadas ou esquecidas, e assim não são consideradas como resultantes do próprio problema ou do problema do outro. Deslocamentos, deslizamentos para criar justificativas são impossíveis diante do inesperado e despropositado. Não se trata de autorreferenciamento, mas sim de uma realidade que se nega, se esconde ou que se extirpa e transforma. Caso haja repetição, a frequência do ocorrido pode gerar justificativas, explicações, culpabilidade e deslocamentos infinitos nos quais se vivencia autorreferenciamento, e assim tudo passa a ser explicado como sendo: "a culpa é do outro", "a sociedade permite isso","é por eu ser imigrante", por exemplo.
Sempre, se o problema do outro lhe atinge, o problema é seu. Assumir esse dado relacional, perceber que nada está isolado é estruturador de autonomia, de liberdade, de disponibilidade necessárias a qualquer ação que se pretenda questionadora de preconceitos e discriminações sociais, e fundamentais à vivência da própria vida.