Documentário dirigido por Marcelo Díaz, com a produção de Diazul de Cinema, retrata a história de Maria Luiza, suboficial das Forças Armadas brasileiras por 22 anos e aposentada por invalidez, após se assumir como transexual.

O filme aborda os conflitos, decepções e conquistas em seu processo de afirmação da sua identidade como mulher trans. Investiga os motivos pelos quais foi proibida de exercer suas atividades militares como mecânica de aviação e realizar seu sonho: vestir um uniforme feminino.

Tocado pela história da transformação pessoal, que de alguma forma questiona o status quo, o diretor Marcelo Díaz conheceu a situação de Maria Luiza após ler uma reportagem do Correio Braziliense:

Há quase dez anos, Maria Luiza me recebeu em seu apartamento no Cruzeiro, periferia de Brasília, de forma muito carinhosa.

Passamos muitas horas conversando, fiquei extremamente impactado com a história que ela me contou, desde a vida em Ceres, interior de Goiás, o sonho de trabalhar com aviação nas Forças Armadas brasileiras, até a luta para continuar na Aeronáutica, como mulher trans, passando pelo 'bastidores' da vida militar, seu casamento, sua filha e o processo de mudança de gênero,

explica.

Maria Luiza nasceu em Ceres (GO) como José Carlos, mas nunca se reconheceu como figura masculina. Curiosamente, era o dia de Santos Dummont, patrono da aviação brasileira. Aos 18 anos, prestou serviço militar e ingressou nas Forças Armadas brasileiras, onde trabalhou por 22 anos como suboficial. Enquanto trabalhava como mecânica de aeronaves na Base Aérea de Brasília, ela revelou seu desejo de uma mudança de sexo.

Depois de muitas consultas médicas - médicos da aeronáutica e psicólogos -, em 1998 recebeu o diagnóstico de transexual e em 2000 o comando militar decidiu que ela deveria se aposentar recebendo a metade do pagamento que costumava receber.

Ela pediu ajuda ao Ministério Público e deu início a um longo processo de reconhecimento de sua identidade como mulher trans. Em 2005 fez a cirurgia de redesignação de sexo e em 2007 corrigiu seu nome e gênero em documentos civis. Só depois de um ano foi emitida sua nova identidade militar como cabo Maria Luiza, fato inédito no país.

As filmagens duraram 2 anos. Foram inúmeros os encontros com Maria Luiza, desde a pesquisa até as filmagens. “Ela é uma pessoa com experiências e força tão impressionantes e uma simplicidade e profundidade inspiradoras que é sempre um prazer estar perto dela. Tenho certeza que qualquer pessoa que tiver a oportunidade de assistir ao filme se emocionará com a história dela e com o que ela representa para o tema da identidade de uma forma mais ampla”, afirma Marcelo.

Além das dificuldades usuais de captação de recursos para a produção do filme, outro grande desafio encontrado ao longo do processo foi acessar o universo militar onde Maria Luiza viveu durante 22 anos de serviço. “Um grande sonho da Maria Luiza era vestir o uniforme feminino e eu queria muito mostrar isso de alguma forma. Mas a realidade às vezes é mais difícil. Maria Luiza não pode voltar ao trabalho militar e usar o uniforme feminino ”, diz o diretor.

Ao contrário da maioria das personalidades transgêneros na mídia, Maria Luiza é modesta, conservadora e observadora. Ela se veste e trata os outros formalmente. Ela é católica e vai regularmente à igreja. Ela mora sozinha em um pequeno apartamento militar em Cruzeiro (uma pequena cidade nos arredores de Brasília). Ela é fã de corridas automáticas e cuida do seu carro como cuidava das aeronaves da FAB (Força Aérea Brasileira).

O filme usa arquivos de seus próprios desenhos, pinturas e fotos para guiar a narrativa por meio de sua subjetividade. Além disso, promove encontros com familiares, parentes, ex-colegas, médicos, advogados, promotores e juízes que participaram ativamente de seu caso e, principalmente, com a própria Maria Luiza.

Os arquivos da imprensa e a análise de seu processo legal sigiloso, que o filme foi autorizado a investigar, também são estratégias narrativas. Com uma câmera fotográfica, em um segundo olhar, o filme mostra outros pontos de vista, pausas, respirações, silêncios, como uma reflexão sobre as construções identitárias e temporais, uma imersão pelas memórias de Maria Luiza e sua ressignificação.

O filme expõe a violação dos direitos humanos no caso de Maria Luiza e é um convite a pensar sobre a real liberdade de expressão da identidade. Marcelo Díaz falou conosco sobre Maria Luiza.

Por que fazer um filme sobre um tema tão complexo em uma época em que a liberdade de gênero, o racismo e a própria democracia são atacados por governos repressivos autoritários, pseudo-democráticos?

O filme demorou muitos anos para ser feito e sua produção reflete as diferentes etapas pelas quais o país (Brasil) estava passando. Mas agora esse problema se tornou ainda mais urgente. Precisamos falar sobre identidade e liberdade de expressão! Precisamos conversar sobre o direito de ser quem você deseja ser. A importância da solidariedade, abertura e inclusão, mais do que aceitação. É vital para a nossa sociedade ter um país com oportunidades reais para todos.

O filme é delicado apesar de toda a brutalidade que Maria Luiza enfrentou, suas palavras não contêm ódio. Como você conseguiu fazer um filme tão sensível e com um imaginário tão poético?

Busquei um tom poético para a trajetória narrativa para contar essa história, que também foi inspirada na forma como Maria Luiza se mostrou para nós. Ela demonstrou, ao mesmo tempo, resiliência e melancolia, mas também nunca se esqueceu de falar sobre as violações de seus direitos que teve de suportar. Essa foi uma forma também de envolver o público do filme em sua vida e de buscar atingir uma maior diversidade de pessoas, indo além do público LGBTQIA+.

Acho que quem assiste ao filme, independente da crença, identidade, ideologia da pessoa etc., sai de alguma forma tocado e transformado. É para isso que serve o filme.

Qual foi o maior desafio que você enfrentou para fazer o documentário?

O maior desafio foi financeiro. Para obter recursos para a realização do trabalho foi necessário muita persistência, em momentos diferentes e ainda hoje para que o filme chegue ao grande público. Também foi difícil acessar a burocracia militar e ter que lidar com suas limitações impostas ao nosso trabalho, bem como sua falta de transparência. Mas aqui estamos.

Qual a diferença entre antes e depois que Maria Luiza se tornou mulher trans?

Acho que seria uma pergunta melhor respondida pela própria Maria Luiza. Enfim, pelo tempo que passei com ela posso dizer que ela se sente "mais completa" depois de se afirmar como Maria Luiza, que é militar, católica e mulher trans. É muito gratificante ver o quanto ela é elogiada por seus colegas da Força Aérea brasileira e tenho certeza que se ela pudesse ter continuado na ativa, teria sido promovida a uma patente mais alta.

Por que Maria Luiza foi afastada do serviço militar?

Ela foi considerada incapaz para o serviço militar apenas por ser uma pessoa trans. Para mim, isso se deu apenas por preconceito.

Quais os riscos que Maria Luiza correria se continuasse na Força Aérea Brasileira?

Não vejo nenhum risco. Acho que como sociedade perdemos uma profissional altamente qualificada, que poderia ter permanecido na ativa, que é onde ela sempre quis estar.

Você acha que algum dia as Forças Armadas no Brasil aceitarão soldados transexuais em seus quartéis?

Eles já estão começando a aceitar isso. Tem o exemplo da Major Renata Gracin do Exército. Como no caso de Maria Luiza, eles queriam afastá-la da ativa, mas ela foi mantida. Antes dela na Marinha, tivemos o caso da Bruna Benevides, que também lutou contra preconceitos semelhantes e acredito que ela conseguirá se manter efetivamente atuante. E existem outros casos também. Maria Luiza diz que foi o primeiro caso, mas esperava que fosse o último caso de não aceitação.

Certa ocasião, ouvi de um militar que, quando a sociedade se abrir para incluir as pessoas trans, as Forças Armadas farão o mesmo.

Eu entendo que é algo complexo e difícil de alcançar e a única maneira é lutar por uma sociedade mais aberta, justa e justa. Consequentemente, instituições como as forças armadas, terão que acompanhar as mudanças da sociedade.