Toda mudança de casa gera uma angústia brutal. E toda mudança faz com que remexamos nossas gavetas e armários da alma. Toda mudança de casa é precedida pelas escolhas dos objetos que devem seguir conosco e os que devem ficar para trás. E, claro, toda mudança também é sucedida por escolhas do que deve entrar no lugar do que se deixou para trás. Não é um processo nada fácil. Ainda mais quando se muda de um espaço grande para um espaço pequeno ou quando se muda de país, motivo pelo qual essa reflexão me persegue como uma sombra desde os idos de março de 2019 quando decidi aceitar uma bolsa de pós-doutoramento em outro país e me mudar. Foi e está sendo um processo longo.
Em tempos de Marie Kondo, minimalismo, redução de uso de plásticos, aquecimento global e outros movimentos, pensar os nossos objetos é ainda tarefa mais árdua. Sempre fui um tanto desapegada das coisas, mas quando você é forçado a escolher o que cabe em uma mala de mão e duas malas de 32 kilos – sendo pobre – você é desafiado a pensar dentro da caixa. É aí que você enxerga o quanto os objetos fazem parte da nossa identidade. Como eu vou deixar para trás a minha caixa de música que ganhei com 15 anos? E a mesinha de canto que meu pai fez e cujo tampo de mosaico foi feito pela mãe de uma grande amiga? Como não levar o meu quebra-cabeça do Parthenon que completou 10 anos e que eu olhava todo dia enquanto traduzia meus poemas gregos? Pois é. A resposta é: deixando. Felizmente minha casa não vai ser desfeita porque o meu contrato tem data para acabar e talvez decidamos voltar ao país, o que torna a coisa menos complicada. Mas, de qualquer maneira, alguma hora a decisão final sobre o que se tem em uma casa vai ter que chegar.
Foi pensando na montagem da minha mala e na venda de alguns itens pessoais que me dei conta do quanto a gente acumula ao longo dos anos simplesmente por termos espaço e por ser mais cômodo deixar a inércia tomar conta daquele ponto cego do armário. Quando entrei em meu escritório e percebi que nem um décimo dos livros eu poderia carregar comigo, vi o quanto o que temos é a gente também. E então, como uma boa e disciplinada pesquisadora, tive que usar minhas habilidades com metodologia e traçar um método para escolher o que colocar na mala. Os critérios foram os mais diferentes possíveis, mas todos tinham por trás o que aquele objeto representava na minha personalidade.
O que foi mais difícil não foi escolher as roupas, sapatos e bolsas, mas os livros e itens de cozinha – outra grande surpresa, pois não gosto de cozinhar, mas descobri um imenso amor por colheres e bandejas. E o meu critério foi se moldando pela funcionalidade – afinal eu vim pesquisar e tinha que trazer meus livros de grego e latim e tinha que cozinhar! – e também pela cultura brasileira e latino-americana. Quando eu terminei de separar os livros, tive que fazer outra triagem, já que eram muitos. Nesse momento percebi que o que eu queria mesmo é levar o que me definia como mulher latino-americana e brasileira. No final, o que falou mais alto foi a identidade que eu pressentia que estava ameaçada com a minha mudança de país. Não foi premeditado. Eu simplesmente vi que a minha escolha se pautava por uma preservação do meu eu. Foi muito bonito ver o que eu sou por esse ângulo, apesar da dor ao ter que deixar ainda muita coisa importante para trás. É muito maluco tudo isso, mas essa mudança transformou a forma como eu me percebo e como eu percebo os meus objetos. Não tem jeito: somos também o que temos!