“Você merece um amante que tire as mentiras e lhe traga esperança, café e poesia”.

(Frida Kahlo)

Na sociedade moderna costuma-se associar o conceito de intimidade à prática de sexo ou aos atos preliminares que o antecedem. Frequentemente isto é feito de maneira mecânica, dissociado de sentimentos ou de um conhecimento mais profundo sobre a outra pessoa. A expressão que hoje se popularizou “ficar com” reflete bem isso.

Num mundo em que o outro está relegado à categoria de objeto e que se teme o envolvimento e a exposição dos próprios sentimentos e das próprias fragilidades, as relações se “coisificam” e não há lugar para a intimidade psicológica.

Saber quem é o outro e o que sente implica em se ‘desnudar’ também.

Desnudar-se passa a ser um desafio bastante grande quando o exercício da intimidade e da entrega afetiva é confundido com o aprisionamento a uma relação.

Assim, é comum aos homens proferirem evasivas como essas ao final de um encontro como estratégias para não se comprometerem: “- A gente se vê!” ou “Vamos nos falando...” Por sua vez a mulher, para cumprir seu papel no script, precisa fingir que não está interessada.

No mundo em que vivemos, sexo casual, sexo virtual, beijo sem contexto, exigências desmedidas com o corpo, são práticas comuns que revelam paradoxalmente a mais profunda falta de intimidade, a superficialidade e a fugacidade das relações. Compromisso passou a ser coisa do passado. Ou se confunde compromisso com propriedade. O poliamor passou a ser uma alternativa legitimada por muitos: relaciona-se com vários(as) para não se relacionar com ninguém.

Se formos pesquisar o conceito de intimidade no dicionário encontramos que se refere ao caráter do que é íntimo, secreto. Por sua vez, o adjetivo íntimo é sinônimo de essencial, interior, profundo, interno, intrínseco, inerente; a natureza íntima de um ser; aquilo que existe no âmago de nosso ser: convicção íntima. Ou ainda, que é inteiramente privado: a vida íntima de uma pessoa.

Por sua vez, chama a atenção em nossa sociedade que a conduta que parece ser mais usual e “inerente” às relações entre os sexos consiste no jogo da mentira. Desde a famosa “mentirinha”, que é para agir de maneira polida e falar o que o outro quer ouvir, até a ocultação de fatos importantes ou a manutenção de relacionamentos clandestinos. Assim, muitos dizem que “amam” quando na verdade tudo que procuram são diversão e passatempo ou simplesmente apimentar outro relacionamento no qual estão envolvidos. Faz-se necessário salientar, entretanto, que, se por um lado há quem minta, por outro, há a pessoa que se deixa enganar.

Existe, é claro, imaturidade de ambas as partes. Uma tendência de não ser coerente e consistente consigo mesmo e com o outro. O texto abaixo retrata bem nossas humanas inconsistências:

Tenho preguiça de ‘não estou sabendo lidar com isso’. De quem não sabe dizer não. De quem fica se autoafirmando sexualmente. De quem não tem coragem de se deixar emocionar. De quem tem discurso libertário e não ousa viver o que diz. De quem acha que é ‘muito longe pra gente ir’. Ou estamos indo muito rápido. De quem não liga pra lealdade. De quem não consegue ver o sagrado do outro... (Maria Gabriela Saldanha).

(«Despertas essencial», Marcela Marques)

Tal como está escrito na epígrafe deste artigo, a pintora Frida Kahlo, embora tenha vivido na primeira metade do século passado, já falava de uma forma mais profunda de se viver os relacionamentos que não aquela onde as pessoas continuam se sentindo sozinhas, mesmo tendo um parceiro para transar. De repente, “café e poesia” acenam como novos ingredientes para os relacionamentos já tão desgastados no quesito intimidade. O que vai trazer esperança e leveza para as relações é algo muito mais essencial/íntimo do que simplesmente “esporrar na bunda do outro”. O advento da liberdade na vida sexual parece ter empanado a sensibilidade, o encantamento e a magnitude do encontro Eu-Tu na sua integralidade.

O grande filósofo Martin Buber ao descrever a natureza do encontro Eu-Tu, dizia que um relacionamento é constituído por dois seres que se comunicam e dialogam entre si, ao que também chamou de intersubjetividade.

Entendo que é neste intervalo chamado intersubjetividade que mora e viceja a intimidade do Eu-Tu.

José Roberto Marques (2018), em sua releitura da obra de Buber, explica que o Eu-Tu é formado pelo sujeito-sujeito, sendo que o “Tu” representa o mundo de cada sujeito. Já na relação do sujeito-objeto, o “Isso” representa o universo do objeto. Por isso mesmo, o Eu-Tu é considerado mais integral e completo, pois representa o relacionamento entre dois seres com o todo um do outro, de forma ampla e plena, ou seja, com seus pensamentos, sensações e sentimentos, por exemplo. Por outro lado, o Eu-Isso se configura como a relação entre o ser com apenas uma parte do todo do outro, num movimento mais distante e impessoal. Em resumo, pode-se dizer que o Eu-Tu é o ser inteiro e o Eu-Isso o não inteiro. Para Buber, é exatamente esta integralidade que torna o ser humano completo.

Nas palavras de José Roberto Marques (2018): “Quando o melhor que habita em mim encontra o melhor que habita em você, criamos uma relação onde a nossa mentalidade e emoções estão alinhadas e ambas caminham na mesma direção.” Para isso, é necessário que haja um diálogo, ou seja, uma interação direta entre as pessoas, de modo que uma integre a realidade da outra de forma ativa. Do contrário, torna-se uma relação pautada no Eu-Isso, ou seja, pelo distanciamento.

Renovar a esperança na existência e no ser humano é o que há de mais precioso. Tenhamos então a coragem necessária para nos abrirmos para o genuíno encontro Eu-Tu.

Um pouco de café e poesia não faz mal a ninguém. Pelo contrário, proporciona longevidade.

Fonte

Martin Buber e a Teoria do Eu-Tu e Eu-Isso. Blog do JRM, 22 de fevereiro de 2018.