Quanto maior a não aceitação de si mesmo, maior a necessidade de apagar ou esconder o que é considerado ruim, o que é visto como mancha, aquilo que pensa e acha ser demérito. A não aceitação se estabelece tanto a partir de situações sociais – origem familiar, status econômico e social –, quanto a partir da dimensão biológica – como as características físicas, étnicas e sexuais. Sentir essas características ou situações como manchas denunciadoras é o que motiva para atingir marcas significativas dentro dos sistemas socioeconômicos e biológicos, dentro das vitrines cobiçadas e valorizadas.
Ter dinheiro, ter domínio, tanto quanto realizar os mais esdrúxulos desejos é valorizado, é o que faz a diferença e o que dá poder e importância. Desse modo, o ser, a possibilidade existencial de cada indivíduo, é resumida em poder, dinheiro e influência na captação de likes. Pessoas são transformadas em vetores propiciadores de vendas e mudanças de comportamento, enriquecem, ficam famosas e se sentem bem-sucedidas seguindo a regra: “compre aqui, aja assim, beba isto coma aquilo”. Despersonalizadas, viram produto.
A ambição realizada é também o vazio instalado e acompanhado constantemente do medo de perder ou de nada mais conseguir. O receio de deixar de significar gera muita ansiedade e também despersonaliza. A ambição, que antes levava a apostar e fazer qualquer coisa para conseguir o que queria, agora é substituída pelo desespero de manter, de pagar qualquer preço para não sair de foco, não sair das plataformas de sucesso e fama.
Na busca de vida e realização total chega-se à quase morte. É como Midas faminto: tudo que toca vira ouro, resultando em não ter mais nada vivo a seu redor. Midas é um personagem grego, era o rei da Frígia que teve um de seus desejos de poder atendido por Dionísio, filho de Zeus.
Essa história começa com Midas ajudando Sileno, um seguidor muito próximo do deus Dionísio, que estava perdido (em algumas versões do mito ele estava bêbado). O deus, grato pelos cuidados com seu companheiro e em agradecimento, diz a Midas que ele tem o direito de fazer um pedido que será imediatamente realizado. Midas, então, pede que tudo que ele toque se transforme em ouro. É prontamente atendido. A partir desse momento, tudo o que ele toca vira ouro, encantando a ele próprio e a todos que o assistem. Mas, após algumas horas de deslumbramento, esse dom se torna um infortúnio, um problema e uma sentença de morte, pois os alimentos, a água que tenta beber, tudo se transforma em ouro.
Além da ambição por poder, beleza e riqueza, existem as supostas aspirações espirituais e políticas que causam destruição, pois manipulam pessoas direcionando-as a propósitos unilaterais e totalitários. Encontramos inúmeros exemplos de lideranças religiosas, supostos mestres espirituais, influencers e políticos populistas que, fazendo qualquer coisa para se manter no centro do poder, pavimentam um caminho de destruição, intolerância e prepotência.
É como se toda a não aceitação de si – em seus contextos sócio, econômico, étnico e sexual – fosse deslocada ao infinito e, assim, quando se consegue chegar à realização da fama e poder, se percebe também quanta coisa foi desconsiderada, encoberta, escondida por meio de artifícios, andaimes e armaduras; e ainda, o quanto cada vez mais se precisa de outros submetidos aos seus desejos e ambições. Dessa maneira é construído o vazio, a falta de espontaneidade, o não saber mais o que fazer para se proteger, salvo empenhar tudo nesse jogo de apostas controladas. Desespero, depressão e medo são os resíduos assegurados por essas vivências, esses processos, desde que eles surgiram da negação, da não aceitação do que se é, buscando atingir o que se gostaria de ser. Superações são sempre desumanizadoras e desesperadoras quando resultam de empenhos ambiciosos gerados por essa não aceitação.
A verdade e o valor do existir consistem em aceitar o que se é enquanto evidência, enquanto possibilidade e limitação. A existência não tem finalidade e impor um propósito a ela é negar processos e continuidade. A ideia, muito comum na psicologia e na pedagogia de que estabelecer objetivos é construtivo e dá sentido à vida é uma ideia devastadora, pois dificultando a vivência do presente direciona atitudes e ações, neutralizando toda e qualquer espontaneidade, disponibilidade e novidade.
Em outras palavras, a vida para depois engessa possibilidades, despersonaliza e infelicita. As metas e desejos alcançados esvaziam a existência e ao redor não se reconhece mais vida. Como o rei Midas, o ambicioso realiza seus objetivos, desenvolve métodos para manter-se no centro e no topo, faz as situações convergirem para o que considera ideal e bom, mesmo que isso desestruture seus afetos, que o isole e deprima. É fundamental se questionar para entender o que possibilitou a redução do próprio mundo à avaliação de melhor e pior. Só assim se iniciam as mudanças e transformações.