O Primeiro Fórum Mundial do Pensamento Crítico, realizado em Buenos Aires pela CLACSO (Conselho Latino-americano de Ciências Sociais) de 19 a 21 do mês passado, fez-me um repto surpreendente: explicar a igualdade aos 1% mais ricos do mundo. Fazer tal explicação perante oito mil pessoas é quase uma provocação. Mas não fugi ao repto. Como tenho escrito, a fórmula dos 1% contra os 99% não foi inventada pelo movimento dos indignados de 2011. Está nas páginas finais do diário de Leo Tolstoi de 1910. A voga desta fórmula está menos na figura de Tolstoi do que nas condições actuais do capitalismo mundial, atravessado por desigualdades entre ricos e pobres que têm muitas semelhanças com as de há cem anos.
Perante o repto, decidi começar por desconstruir a pergunta. Era uma pergunta velha, uma pergunta típica do século XX. Em primeiro lugar, no século XXI, e depois de todas as vitórias dos movimentos feministas e anti-racistas, seria mais correcto explicar não a igualdade mas a diferença. A igualdade não existe sem ausência de discriminação, ou seja, sem o reconhecimento de diferenças sem hierarquias entre elas (homem/mulher, branco/negro, heterossexual/homossexual, religioso/ateu). Neste ano em que celebramos os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos recordo a formulação que tenho dado a este tema: temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza e o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.
Em segundo lugar, a pergunta visava explicar aos 1% mais ricos. Não faria mais sentido, ou não seria mais útil, explicar a igualdade aos 99% mais pobres? Explicar a igualdade aos 1% é como explicar ao diabo que deus é bom. Se eu o tentar fazer, talvez não me entendam; e se me entenderem, talvez me expulsem ou proíbam de escrever sobre o tema. Recordei a propósito esse sinistro movimento de extrema direita educacional no Brasil, conhecido pelo nome ardiloso de Escola Sem Partido, que nos seus últimos documentos inclui entre os autores proibidos: Karl Marx, Paulo Freire, Milton Santos, José Saramago, António Gramsci. Lembrei, a propósito, a situação de antigos estudantes meus, hoje professores nas universidades brasileiras, que se sentem perseguidos e monitorizados (senão mesmo filmados) nas suas aulas de sociologia política e direitos humanos, suspeitos de defender “ideias vermelhas” ou “ideologia de género”, a mais recente inovação conceptual das cloacas autoritárias e neofascistas.
Perguntei-me, pois, se não seria mais útil e adequado explicar a igualdade aos 99%. Mas aí auto-suspendi-me na minha reflexão: seria afinal necessária tal explicação? Não saberão eles melhor que ninguém, e com a prova de todas as rugas da vida, o que é igualdade e desigualdade? Precisarão de alguém que lhas explique? No domingo anterior tinha passado uma boa parte do dia num dos bairros mais pobres e mais resistentes de Buenos Aires, o bairro Zavaleta, onde um grupo de activistas produz cooperativamente uma revista, a Garganta Poderosa, que vai sendo conhecida em todos os bairros pobres do continente. Aí pude verificar como para eles e elas a igualdade se explica facilmente pela desigualdade que sofrem nos corpos e na vida todos os dias. Acompanhado à distância por militares (não polícia civil) que controlam a comunidade, pude ver que não é igualdade quando umas senhoras voluntárias se organizam para receber doações de produtos alimentares e criar um restaurante comunitário onde os jovens comem uma boa refeição por dia. Que não é igualdade quando quase todos os habitantes têm um jovem parente, amigo, filho ou neto assassinado pela polícia. Que não é igualdade quando as inundações das últimas semanas impedem as cloacas improvisadas de aguentar e as crianças acordem com a cama cheia de merda (peço ao editor que deixe passar esta palavra, já que qualquer outra servirá apenas para suavizar a má consciência de quem dorme em caminhas Chicco). Que não é igualdade se alguém em coma diabético morre no transporte em braços solidários pela rua estreita até chegar ao local onde a ambulância o pode recolher. Em Zavaleta, a igualdade explica-se bem pela desigualdade, pela violência policial, pela desvalorização da vida, pela degradação ontológica de quem lá vive.
Mas mesmo admitindo que a explicação tem sentido, a formulação do convite padece ainda de um outro erro, um erro epistemológico. Pressupõe que há um conhecimento específico e o único válido para explicar a igualdade, isto é, o conhecimento científico. Ora tal não é verdade e, neste caso concreto, é particularmente importante que isso se esclareça. A filosofia eurocêntrica – e as epistemologias do Norte que dela nasceram e deram origem à ciência moderna – assenta na contradição de defender em abstracto a igualdade universal e ao mesmo tempo justificar que parte da humanidade não é plenamente humana e não é, por isso, abrangida pelo conceito de igualdade universal, seja ela constituída por escravos, mulheres, povos indígenas, povos afrodescendentes, trabalhadores sem direitos, castas inferiores. Nem é preciso mencionar que John Locke, grande patrono da igualdade, foi dono de escravos, ou que a eugenia, “a ciência mais popular” do início do século XX, demonstrava cientificamente a inferioridade dos negros, uma ciência que Hitler estudou atentamente na prisão ao preparar Mein Kampf. Por isso, confiar em que as ciências nascidas das epistemologias do Norte expliquem adequadamente a igualdade é o mesmo que escolher o lobo para guardar as ovelhas. Uma metáfora menos chocante será a de pensar que a ajuda ao desenvolvimento ajuda de facto os países a desenvolver-se. Ao contrário do que promete, ela contribui, não para desenvolver os países, mas para os manter subdesenvolvidos e dependentes dos mais desenvolvidos.
As epistemologias do Sul que tenho vindo a defender partem dos conhecimentos nascidos nas lutas daqueles e daquelas que viveram e vivem a desigualdade e a discriminação, e resistem contra elas. Estes conhecimentos permitem tratar a igualdade como denúncia das desigualdades que oculta ou considera irrelevantes para a contradizerem. Permitem também tratá-la como instrumento de luta contra a desigualdade e a discriminação. Apenas para dar um exemplo: as epistemologias do Sul permitem reconceptualizar o capital financeiro global, o verdadeiro motor da extrema desigualdade entre pobres e ricos e entre países ricos e países pobres, como uma nova forma de crime organizado. Trata-se de um crime contra a propriedade dos trabalhadores e das classes empobrecidas, constituído por vários crimes-satélites, sejam eles, o estelionato, o abuso de poder, a corrupção. Só para dar um exemplo extremo: um trabalhador no Brasil que use o seu cartão para comprar a crédito chega a pagar uma taxa de juros de 326%! Como diz o economista Ladislau Dowbor, o crédito no Brasil não é estímulo, é extorsão. A sua natureza criminosa é o que explica o exército de advogados ao seu serviço para se defender das múltiplas violações das leis e para mudar as leis quando tal seja necessário. Só assim se explica que no Brasil, segundo dados da Oxfam, 6 pessoas tenham mais património do que a metade mais pobre da população, e que os 5% mais ricos tenham mais do que os 95% restantes.
Mas o capital financeiro global, na sua actual configuração, não é apenas um crime contra a propriedade dos mais pobres, é também um crime contra a vida e contra o meio ambiente. Dados de várias agências internacionais, incluindo a UNICEF, revelam que as políticas neoliberais de ajustamento estrutural ou de austeridade têm conduzido à diminuição da esperança de vida em África e à morte por subnutrição ou doenças curáveis de milhões de crianças. As mesmas políticas têm vindo a exercer uma pressão enorme sobre os recursos naturais, exigindo a sua exploração cada vez mais intensiva, com a consequente expulsão das populações camponesas e indígenas, a contaminação das águas e a desertificação dos territórios. Além disso, as poucas regras de protecção ambiental que tinham sido conquistadas nas últimas décadas estão a ser violadas ou anuladas pelos governos de direita. O exemplo mais grotesco é hoje Donald Trump; amanhã será certamente Jair Bolsonaro. Com isto, torna-se muito provável que os cenários mais pessimistas propostos pela ONU possam vir a concretizar-se.
À luz das epistemologias do Sul, os crimes cometidos pelo capital financeiro global serão uns dos principais crimes de lesa-humanidade do futuro. Junto com eles e articulados com eles estarão os crimes ambientais. No ano em que celebramos os 70 anos da Declaração Universal, recomendo que comecemos a pensar na revisão da sua redacção (e num modo totalmente novo de participação na redacção) para dar conta da nova criminalidade que nos próximos 70 anos continuará a impedir a humanidade de ser plenamente humana.