O artista suíço Hanspeter Amman, um dos pioneiros da vídeo arte na Europa, usa o vídeo na contramão da História para contar histórias através das imagens, histórias que prescindem do texto, da fala. Histórias que são cartografias de corpos, que criam paisagens culturais através do movimento lento, do movimento contido, do não-movimento. As suas imagens exigem, do espectador, tempo de contemplação, de compreensão e de apreensão do que não é dito, mas que se diz por se apresentar no ecrã, que se expõe. E expor (se) é um termo chave para quem deseje penetrar na sua obra – o artista expõe os corpos que se disponibilizam, que se deixam percorrer pela câmara, que se deixam imobilizar e se transformam em imagens, simulacros de um universo paralelo, multicultural, híper étnico, num espaço de ambiguidade que torna o contemplador livre para desfrutar do que vê, como um voyeur solitário, interpretando, ou não, os contextos e subtextos que cada obra dispõe.
As imagens não são trabalhadas para mascarar a realidade, mas sim para avivá-las, para torná-las mais realistas e mais reais, sem descurar, no entanto, a poesia, o lirismo implícito em cada plano. O neorrealismo italiano deu-nos filmes crus, desinvestidos de ambiguidade à procura de sentidos unívocos. Mas o neorrealismo deu-nos também Lucchino Visconti e Pier Paolo Pasolini, os mestres da ambiguidade e do lirismo, capazes de transformar a fealdade em beleza, a transgressão em arte.
Rocco é uma obra que pede tempo, que é feita de imagens que se arrastam no tempo, seguindo outra lógica que não a do movimento contínuo e progressivo. Entre a fotonovela e o filme, desfilam ante nossos olhos um conjunto de imagens de corpos jovens, seminus, em planos médios e em grandes planos. Corpos que encenam uma luta, um jogo de sedução, uma dança. Corpos em movimento contido e ensaiado, encenado. Corpos e rostos de homens comuns, de homens do povo, de homens que habitam o imaginário artístico desde, pelo menos, a obra de Caravaggio e que são reencontrados, mais tarde, no cinema neorrealista de Pasolini e de Visconti.
O Cristo de Pasolini não tem olhos azuis nem a tez delicada. A maneira como a câmara passeia pelos atores, nos seus filmes, é dura – deixando que a pele curtida, as imperfeições, as máculas, no fundo, a verdade de cada corpo que sua, que tem poros, reentrâncias, seja revelada. A câmara, e a luz do cinema de Pasolini extrai da fealdade, a beleza, do mundo real, o lirismo, sem mascarar, ou enfeitar o que se mostra. Pasolini expõe.
Esta exposição crua, fotografada em alto contraste, é visível nesta obra de Hanspeter Amman – que lhe acrescenta a mise-en-scène poética da obra de Luchino Visconti. O seu photo roman reproduz, em diversos momentos, gestos que ficaram impressos na memória dos cinéfilos - gestos presentes em Rocco e seus irmãos, revisitados aqui por corpos orientais, de desconhecidos, o que torna ainda mais forte a ideia de transgressão do filme de Visconti – como amar aqueles que se perderam? Os que estão à margem? Os não-heróis? Os homens vulgares que não conhecemos?
O olhar amoroso de Visconti e de Pasolini está presente aqui – amor pelos personagens, amor pelos seus corpos e pela sua imperfeição. A câmara espreita e admira. A câmara acompanha delicadamente cada gesto e vai registando o movimento que se prolonga em cada nova foto. O movimento simulado, o não movimento do cinema, reencenado também neste processo de negação da continuidade e da fixação de cada gesto. Espreitamos as histórias que os corpos no ecrã insinuam. Entre o jogo e a luta, entre a submissão e a conquista, entre o desejo e a fuga, as personagens executam uma coreografia exata, enxuta, perfeita. Uma coreografia que convida o espectador a cumprir o seu papel – ficar expectante, à espera de algo que nunca finaliza, que não se completa, que não se fecha. Uma história em aberto que convida ao gesto mais primitivo e a pulsão mais básica - o voyeurismo.
No vídeo, e no cinema, eu vejo, sem ser visto. O meu gozo é este - não ser visto e desfrutar do que vejo à distância. As personagens olham, diretamente para cada um de nós e nós devolvemos-lhes o olhar, mas nossos olhos nunca se cruzam, há um ecrã entre nós, este espaço intransponível que nos protege. As personagens seguem, no ecrã, a sua dança interminável, executada, quadro a quadro, como num tempo mítico, fora do tempo. Um tempo outro que não tem pressa de andar para frente. Um tempo que permanece. Um tempo que se nega a reproduzir o movimento do vídeo, mas que se (re) produz passo a passo, delicadamente. O tempo da leitura. O tempo das imagens sem tempo de Hanspeter Amman.