Thoreau, que tinha tuberculose, escreveu em 1852: "A morte e a doença muitas vezes são bonitas, como.... o brilho héctico da consunção." Ninguém concebe o câncer de maneira como a tuberculose era concebida, como uma morte decorativa e, muitas vezes, lírica. O câncer é um assunto raro e ainda escandaloso na poesia. E é inimaginável que ele confira estética à doença.
(Susan Sontag)
“Tudo o que faço transforma-se em paisagem”, diz-me a artista. Através do desenho, das suas linhas e curvas, da sua sinuosidade e dos múltiplos caminhos que a linha pode percorrer, Milita Doré está sempre a criar paisagens, mesmo quando faz retratos, mesmo quando o desenho é de um corpo.
A paisagem é um lugar para onde se olha, é um recorte da natureza, feito por quem a vê, é um espaço real e imaginado. É também, e sobretudo, um espaço metafórico. Ao contrário da natureza desmesurada e inabarcável, a paisagem pode ser representada e contida entre a moldura de um quadro, entre as margens do papel. E é essa capacidade metafórica da paisagem que encanta a artista e faz com que seus retratos sejam, ao mesmo tempo, corpo e relevo.
Montanhas de amor é uma exposição que expande a ideia de paisagem da artista que adentra, pela primeira vez, na paisagem inusitada do próprio corpo, região até então inexplorada. A tomada de decisão de autorretratar-se, e de se deixar retratar, surge num momento de extrema sensibilidade – a descoberta de um cancro da mama. A artista decide convidar amigos e amigas artistas para retratá-la antes de sofrer o tratamento que iria deixar cicatrizes, reais e metafóricas, no seu corpo.
No livro A doença como metáfora, lançado em 1978, Susan Sontag reflete sobre a condição de duas doenças, e dos seus doentes, que afetaram, e afetam, de maneira diversa a sociedade: a tuberculose, no séc. XIX e o cancro no séc. XX. Para a escritora e crítica norte-americana, a sociedade trata e/ou tratou ambas as doenças através de metáforas, pela incapacidade humana de encarar de frente a morte, ou a sua inevitabilidade. Encontrada a cura para a tuberculose, que foi romantizada e estetizada, e que se tornou parte do imaginário dos artistas do séc. XIX e começo do séc. XX, resta o cancro, ou o Grande C, a inominável doença que ainda não tem cura e que ainda é estigmatizada. Para Sontag, dificilmente alguém conseguiria transformar a doença em poesia, ou em arte. Para Milita Doré, transformar a doença em arte foi a maneira encontrada de lidar com o estigma, com o medo, com as incertezas e com a mutilação. Cada desenho, cada fotografia, cada peça criada pela mão das pessoas amigas que convidou, recompuseram o seu corpo, mantiveram a sua inteireza, eternizaram o efémero, que somos todos nós, em imagens que permanecerão.
Com as imagens dos outros sobre si mesma, a artista compôs duas grandes peças em forma de montanha – uma é preenchida por desenhos e a outra é feita de plástico, cordas e fios de metal. Funcionam como estruturas especulares, na forma, e opostas, no conteúdo: uma é cheia e a outra vazia. A ideia de cheio e de vazio é reproduzida nas várias obras que a artista concebeu para esta exposição. As imagens médicas, que mostram o corpo por dentro, foram seccionadas e bordadas em quatro guardanapos brancos – as linhas indiciam uma presença quase invisível, tracejada e incompleta. O bordado, arte tradicionalmente associada ao universo feminino, é usado pela artista como um apontamento sobre esse universo que é composto de ideias e de ideais – o corpo feminino tem volumes e reentrâncias próprias e os seios são como montanhas que despontam na/da planura do ventre e que encarnam, em si mesmos, o conceito de feminilidade.
Entre vídeos, esculturas, instalações, fotografias e desenhos, Milita Doré reafirma a sua condição – mulher e artista. Criadora de paisagens, condutora do seu próprio destino, a artista transformou as obras dos outros em suas, fundiu as representações com a presença do próprio corpo que se deixou retratar, que não resistiu, que se deu de forma generosa e que foi acolhido por mãos e olhos afetuosos. Ao tentar explicar o conceito de paisagem, o sociólogo alemão Georg Simmel afirma que a única maneira de o fazer é comparando o espectador ao artista:
O que faz o artista – tomar um fragmento da corrente caótica e infinita do imediatamente dado, concebendo-o e configurando-o como um todo autónomo, cortando os fios que o vinculam ao universo para voltar a entretecê-los – também o fazemos nós.
Montanhas de amor é o resultado da tessitura de vários fios, vinculados ao real e ao imaginário, ao universal e ao particular, à dor e à poesia. É uma paisagem laboriosamente inscrita no corpo da artista que se desvela para todos e para cada um de nós.