Veneza é uma cidade que nos arrebata o fôlego desde o primeiro olhar e nos transporta a um mundo indescritível ao nos vermos inevitavelmente perdidos por suas ruelas históricas. E durante a Biennali di Venezia ela se transforma em uma “Meca” mundial da Arte. A cidade que por séculos dominou o Mar Mediterrâneo e o comércio entre o Oriente e o Ocidente, desde 1895 passou a conquistar a atenção e admiração do mundo durante os meses da Bienal.
A Bienal de Veneza é uma exposição internacional de arte que ocorre numa frequência de dois em dois anos. Foi criada por um grupo de intelectuais e artistas venezianos com o objetivo duplo de desenvolver a arte sem distinção de Pátria e de propiciar o renascimento econômico da cidade através do mercado da Arte.
Imagem da Primeira Exposição de Arte de Veneza que se tornaria a Bienal de Veneza. Disponível em Prima Biennale di Venezia 1895. Acesso em 5 de set. 2023.
Se as primeiras décadas a Bienal foram marcadas pelo academicismo e presença majoritária de artistas tradicionais, com o tempo a vanguarda ganhou espaço e hoje domina suas exposições. Outro desafio conquistado foi seu caráter internacional. Sempre recebeu artistas de diversos países, mas até o século XX eles estavam circunscritos à Europa. Paulatinamente, artistas de outros continentes ganharam espaços e pavilhões em Veneza. Em 2007, pela primeira vez, houve um Pavilhão Africano.
Atualmente a Bienal tem um caráter multidisciplinar e abarca trabalhos de Artes Visuais, Arquitetura, Música, Cinema, Teatro e Dança, instalados no Pavilhão Central e nos diversos pavilhões de países de todos os continentes. A ideia de pavilhões nacionais vem da própria cultura romana que incorporava a cultura dos povos anexados ao Império, sem anulá-las. Esse formato se mantém nas Bienais de Veneza, apesar de algumas críticas de que restringem as discussões mais globais sobre a Arte Contemporânea. Respondendo a essa demanda, à partir de 1980 sua Curadoria passou a apresentar um tema único para as exposições, o que dilui a própria ideia de Nação e provoca um maior diálogo entre todos os expositores.
O Brasil ganhou o seu pavilhão individual em 1964, mas já participava da Bienal com exposições de artistas independentes e representações nacionais no Pavilhão Central. O primeiro artista a participar da Bienal de Veneza foi Alberto da Veiga Guignard, em 1928, de forma independente. Já a primeira representação oficial do país se deu apenas em 1950.
Em 1948, na primeira Bienal após a interrupção provocada pela Segunda Guerra Mundial, o Brasil teve um espaço reservado para exposição no Pavilhão Italiano e entrou no catálogo oficial do evento. Porém, as obras não foram enviadas a Veneza há tempo e os organizadores somente foram avisados duas semanas após a inauguração.
Diante disso, o Brasil apenas participou oficialmente da Bienal de Veneza na edição posterior de 1950, onde contou com obras de doze artistas modernistas: Di Cavalcanti, Roberto Burle Marx, Cícero Dias, Victor Brecheret, Milton Dacosta, Flávio de Carvalho, José Pancetti, Lívio Abramo, Oswaldo Goeldi e Alfredo Volpi. Após a “quase estreia” em 1948 e a efetiva estreia em grande estilo em 1950, o Brasil participou ativamente das demais Bienais de Veneza.
Em 1964 o Brasil inaugurou o seu próprio pavilhão, sob os olhares desatentos do Governo Militar que havia tomado o poder por um Golpe algumas semanas antes da Bienal. A migração das exposições no espaço restrito do Pavilhão Central para o seu próprio e amplo pavilhão foi um marco na representatividade da Arte Brasileira. Além disso, nessa edição, houve uma presença do Brasil também na comissão de seleção e júri internacional: a do poeta e crítico de arte Murilo Mendes.
O Pavilhão do Brasil foi projetado por Henrique Mindlin, juntamente com o italiano Amerigo Marchesin. Acreditava-se que o arquiteto Oscar Niemeyer assinaria o projeto do pavilhão, o que não foi possível diante de seu intenso envolvimento com as obras de Brasília.
Os atropelos típicos com os prazos de seleção e envio de obras à Bienal persistiram, agravados pelo clima de tensão com a Ditadura Militar recém instaurada. Os artistas selecionados para inaugurarem o Pavilhão do Brasil em Veneza foram: Tarsilla do Amaral, Alfredo Volpi, Franz Weissmann, Frans Krajcberg, Abrahan Palatnik, Almir Mavignier, Maria Boroni e Glauco Rodrigues. O momento truculento vivido no Brasil não harmonizava com a leveza artística de Veneza. O silenciamento da Ditadura que se implantava no país não sintonizava com a liberdade da arte na Bienal. Apesar desse paradoxo, o Brasil estreou seu próprio Pavilhão em 1964.
Imagem do Pavilhão do Brasil em Veneza.
Artistas brasileiros de destaque passaram pela Bienal de Veneza ao longo dessas últimas décadas. E, em 2023, o Pavilhão do Brasil ganhou pela primeira vez o Leão de Ouro, na Bienal de Arquitetura. Foi com o projeto Terra, dos curadores Gabriela de Matos e Paulo Tavares. Segundo os próprios idealizadores, o projeto procurou retratar e refletir sobre o que se passa no Brasil, sobretudo com os povos indígenas.
Essa temática dos povos originários, no entanto, já havia estado presente no Pavilhão do Brasil na edição anterior através das obras de um representante dos povos indígenas: o macuxi Jaider Esbell (1979-2021). Esse artista, educador, curador e ativista foi um dos representantes do país na 59ª edição da Bienal de Veneza - entre 23 de abril e 27 de novembro de 2022 - ao lado de Lenora de Barros, Luiz Roque, Rosana Paulino, Solange Pessoa e Jonathas Andrade.
A Bienal de 2022 teve uma singularidade histórica que nem a imaginação artística seria capaz de prever. Foi concebida e organizada durante a Pandemia da COVID-19 e precisou ser adiada. Em toda a História das Bienais de Veneza, desde 1895, apenas uma edição havia sido suspensa, durante a Segunda Guerra Mundial. A 59ª Bienal simbolizou o renascimento e a continuidade das Bienais pós-pandemia, da socialização artística e da própria vida humana no planeta. Trouxe reflexões sobre a sobrevivência da espécie humana, do que a diferencia dos outros animais e das suas relações com o meio em que vive. Teve a primeira mulher italiana a ocupar o cargo de Curadoria Geral: Cecília Alemani e a participação de 213 artistas de 58 países, sendo 180 deles estreantes na Bienal.
O tema escolhido para essa edição foi Il latte dei sogni (O leite dos sonhos), inspirado no livro de mesmo nome da inglesa Leonora Carrigton que nos conduz em uma viagem surrealista onde todos podem ser transformados. A autora traz um mundo mágico transformando e reinventando a vida cotidiana através da imaginação.
A obra de Jaider Esbell encaixa-se perfeitamente nessa proposta, pois expressa no mundo visual algo que não se alcança pela racionalidade. Retrata a cosmologia e a narrativa do mundo indígena que apenas a imaginação pode tornar inteligíveis. Na estética indígena Macuxi revelada por Jaider, o tempo é sobreposto por camadas de passado, presente e futuro; por linguagens mágicas associadas às políticas.
A temática ambiental é uma constante no trabalho de Esbell, o que também o colocava em sintonia com a 59ª Bienal de Veneza. Seus organizadores demonstravam preocupação com a sustentabilidade, com a conexão entre corpos e natureza e previam, inclusive, um plano de organização de suas atividades que permitisse `a Bienal obter a certificação de Carbono Zero.
Como o próprio Jaider Esbell deixou registrado numa gravação feita para a Universidade de Princeton: “Ser um artista indígena a partir da minha própria perspectiva é reivindicar por meio dessas quatro letras ‘ARTE’ tudo o que ela nos conecta em termos de possibilidades e transpor exatamente mundos. É uma condição muito especial”.
A arte de Jaider Esbell é uma corporificação de memórias, inquietações, reinvindicações e diálogos em busca de um mundo capaz de abarcar todos os grupos sociais e étnicos que compõe a nossa sociedade. Retira a Arte Indígena do campo do exótico, do passado, da qualidade inferior. Esbell sempre foi um Artivista, um artista ativista, que lutou para criar espaços e dar voz à plural Arte Contemporânea Indígena Brasileira.
Nesse processo, Jader Esbell trilhou caminhos que o levaram da pequena Normandia em Roraima para Boa Vista, para São Paulo e para além das fronteiras do país. Começou com uma bem-sucedida carreira federal de eletricista, chegando à Universidade de Geografia e à atividade artística. Tornou-se escritor, educador, artista plástico, curador, professor e uma grande liderança indígena.
A arte de Esbell traz consigo uma ação transformadora da realidade, através de uma linguagem política que recoloca os indígenas no mapa social e no cotidiano brasileiro. Expressa uma população plural e contemporânea, descontruindo a visão estereotipada que a apresenta como um “povo do passado”.
Jader Esbell é originário da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, um território emblemático na luta indígena pelo direito à demarcação de suas terras. Foi no julgamento da Petição nº. 388, que trata da demarcação da Terra Indígena Raposa Terra do Sol e da Terra Indígena Limão Verde que se criou a infame Tese do Marco Temporal. Essa tese recentemente rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal ainda se encontra em discussão e votação no Congresso, fixando a data da promulgação da Constituição Federal de 1988 como marco insubstituível para o reconhecimento dos direitos originários dos povos indígenas as suas terras tradicionais. Portanto, o Marco Temporal defende que os povos indígenas têm direito apenas às terras que ocupavam no momento da promulgação da Constituição que garantiu a demarcação de seus territórios. Não reconhece toda a realidade de invasão, expulsão e expropriação das terras indígenas ao longo da História e não leva em consideração que, até 1988, essas comunidades eram tuteladas pelo Estado e não puderam lutar juridicamente por seus direitos. Essa luta ainda está em curso e Jaider Esbell a conhecia e a acompanhava de perto como artivista.
O artista foi conquistando espaços e prêmios nos últimos anos, como a função de professor no Pitzer College em 2013 nos Estados Unidos e a indicação ao Prêmio PIPA em 2016, o maior prêmio da arte contemporânea Brasileira. Realizou exposições diversas como a do Centro de Artes da Universidade Federal do Amazonas, do Memorial dos Povos Indígenas no SESC Boa Vista, da Galeria Millan de São Paulo, da Grove House nos EUA; do Paço das Artes, do Espaço Philippe Noiret da França; do Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense, do Centro Cultural Banco do Brasil de várias capitais, do Museu de Arte da Universidade Federal do Paraná, da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Em 2021 conquistou um espaço de destaque na 34ª Bienal de São Paulo, foi o curador de uma mostra paralela à Bienal organizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo e teve obras adquiridas pelo Centre Georges Pompidou, em Paris. Em 2022 chegou ao ápice que todo artista almeja: suas obras foram expostas na Bienal de Veneza.
Entretanto, Jaider já havia se retirado desse plano terreno. No dia 2 de novembro de 2021 foi encontrado morto em São Paulo, após cometer suicídio. Mas antes de partir, deixou seu nome registrado na História da Arte e cravou seu olhar singular e representativo dos povos originários brasileiros na Meca da Arte Mundial.
A Bienal de Veneza atravessou séculos expressando novas linguagens e novas formas de pensar a Arte, potencializando grandes transformações. A presença de Jaider Esbell na 59ª edição de 2022 é significativa, pois contribuiu para que essa Bienal histórica se reconectasse com sua essência e pautou temáticas e estéticas que a cada ano ganham maior destaque no mundo.