É comum que tenhamos “fissuras” em nossas famílias, mas até para quem sai a esmo, na mais completa solidão acaba encontrando em alguma esquina da vida, um amigo. Aquele de quem é possível se aproximar para se aquecer em noites frias ao pé de alguma fogueira improvisada. Aquele a quem se pode contar histórias, compartilhar segredos, dividir o pouco que se tem ou até mesmo pedir um socorro quando o carro ‘empaca’.

Os amigos são aquelas pessoas com quem possuímos pontos de identificação e com quem construímos alianças. Assim, o amigo é o nosso espelho, aquele em quem nos vemos refletidos e com quem acabamos desenvolvendo uma forte cumplicidade.

O provérbio já dizia que “aves do mesmo bando andam juntas”. Isto significa que, mesmo que a família de sangue tenha se esfacelado, é possível construir uma nova família e se nutrir com ela e nela.

A presença do amigo nos faz sentir mais aconchegados e aquecidos, por maior que seja o frio de nossas almas.

Milan Kundera, escritor tcheco, escreveu em seu livro – A Identidade – que a amizade é indispensável para o bom funcionamento da memória e para a integridade do próprio eu. Chama os amigos de “testemunhas do passado” e diz que toda amizade é uma aliança contra a adversidade, aliança sem a qual o ser humano ficaria desarmado contra seus inimigos.

Desta forma, conforme salientou o psicólogo José Carlos Vitor Gomes em seu artigo – A Arte de Equivocar-se na Vida – a felicidade, o amor, a alegria, o sexo, a salvação ou o nirvana, são dessas coisas que só conseguimos “com o outro” e jamais sozinhos quando isto for uma escolha. “São coisas que nascem na sagrada dimensão do ‘entre’, e o ‘entre’ é o vazio do encontro e das relações, algo que pertence à magia da intimidade dos relacionamentos e se compartilha por si mesmo, espontaneamente, sem a necessidade da nossa mediação e nem de esforço e nem da nossa vontade.”

Gomes ressalta que “a força do ‘entre’ é algo próprio do humano. Do milagroso vazio que, num dado momento, se instalou entre nós para que algum sentido dali fluísse. O relacionamento é algo que flui e não pertence a nenhum dos dois, mas que transborda naturalmente do encontro.”

E neste intervalo do “entre” é possível construir muita coisa... Um projeto amoroso, um projeto de trabalho, um envolvimento por uma causa social, política, aliar-se na luta por um planeta economicamente sustentável ou simplesmente aliviar-se e sentir-se acolhido no desabafo de uma confidência; enfim, é no vazio que existe “entre nós” que nasce algo novo, através do que se torna mais fácil acreditar e sentir que viver vale a pena, e que a vida é bela.

Coisas estas que não havíamos sequer sonhado quando estávamos sós, ou quando nos sentíamos desesperados ante o esfacelamento de nossa família consanguínea. A conquista do nosso lugar no planeta está relacionada com as redes que conseguimos tecer em nossa trajetória por ele e depende única e exclusivamente de nós.

É um costume renitente atribuir às figuras parentais a responsabilidade por nossas mazelas ou nossos sofrimentos. E ao tornarmos presentes velhas histórias, fazemos disso o combustível que mantém em alta nossa autopiedade, da qual nos nutrimos, e que nos confere uma identidade de ‘eternos injustiçados do universo’, fechando assim o círculo vicioso. Assim agindo, deixamos de abrir espaço para o outro e a magia do encontro não acontece.

É sempre bom responder com Gratidão ao universo e ao Criador por se estar vivo, mas principalmente, ser capaz de proferir essa palavra mágica àquele que, no silêncio de sua anuência, faz nosso coração vibrar e nos confere legitimidade e a tudo aquilo que nos representa.

Gratidão, pois, a todos os amigos conhecidos ou não, que tentam fazer deste planeta uma casa melhor para se viver...

Referências:

  • Gomes, J.C. V. - A Arte de Equivocar-se na Vida. Site do psicólogo– Campinas e Araraquara

  • Kundera, M. - A identidade. São Paulo, Companhia das Letras, 2009. 115 p.