Afirmo, na psicoterapia gestaltista, que a culpa é a tampa da impotência. É também uma maneira de negar, de esquecer, de desconsiderar, de alienar-se do que enfraquece, do que imobiliza. Hoje, um dos exemplos mais contundentes de divisão e impotência que geram culpa, é a vivência das mulheres que se inserem no mercado de trabalho, seja das que constituem família com filhos, seja das que optam por viver sozinhas. É comum em consultório, o relato de mães que se sentem culpadas em relação aos filhos, por deixá-los com babás enquanto saem de casa para trabalhar, para assistir um filme ou ir a um restaurante, entre outras coisas. Sentem-se culpadas quando fazem qualquer coisa que não seja justificada pelo bem de seus filhos ou de seus maridos. Sentir-se culpada é alienar-se de seu comprometimento, de seu papel de mãe, de sua inautenticidade. Ser uma pessoa e ter filhos são realidades antagônicas para estas mães, há uma divisão e por isso a culpa, a falta de liberdade, a falta de critérios próprios para agir. Da mesma forma, mulheres solteiras, que decidem se dedicar à carreira em detrimento de casamento e maternidade, sentem-se culpadas por não estar satisfazendo as expectativas familiares e sociais. Quando cedem às pressões cumprem regras e papéis considerados sem importância por elas, mas fundamentais para sua inserção social e familiar.
Os culpados podem ser absolvidos pelo outro, podem ser libertados, amparados ou punidos pelas leis, entretanto, quando alguém se sente culpado, nada o liberta, nem absolve dessa culpa enquanto ele não perceber seu processo de impotência, de medo, de dificuldade e utilização do outro por conveniência e apoio. Quem sente culpa pode até utilizá-la como justificativa, explicação do erro, do acerto, explicação da própria vida, mas o que ele não consegue é dela se libertar, seja como ferramenta torturante, seja como chave para abrir novas perspectivas por meio da ajuda que angaria. Só ao perceber sua impotência, suas não aceitações e problemas diante do outro, de si mesmo e da sociedade, é que o indivíduo percebe que tem utilizado a culpa, medos e justificativas como tampa para essa situação amedrontadora, aniquiladora e redutora de suas possibilidades humanas.
Vivências de culpa geralmente são intensas e atordoam, independentemente da gravidade das situações em que se inserem. Um pai pode, por exemplo, sentir-se culpado durante muito tempo pelo envolvimento do filho com drogas e roubos, quando percebe que isso resulta da educação falhada que fechava os olhos às cópias ou à compra de gabaritos de provas e concursos, ou até as patrocinava. Cotidianamente se é exemplo de integridade ou de desonestidade para filhos, companheiros e amigos. Esta incoerência - “pequenos erros, pequenas falhas” - se constituirá nos espelhos, nas maneiras de viver para si e para os outros que consigo convivam. Só por meio da percepção globalizada do que ocorre, da lucidez (gerada por questionamentos terapêuticos) e aceitação dos próprios processos de vida, é que são aceitas as impotências, podendo, assim, deixar de se sentir culpa.
Entregar-se à própria culpa - maneira de lidar com ela - configura as vítimas, sempre aceitando ser humilhadas; ou configura os autoritários, prepotentes, capazes de todas as chacinas, irresponsabilidades e maldades, em nome de verdades que são as mentiras mantenedoras de sua desumanização, disfarce e poder.
A culpa nada repara, tudo destrói, pois é estabelecida em deslocamentos que escondem incapacidades, medos, raivas e ódios.
Sentir-se culpado é posicionar-se no disfarce, no engano, no faz de conta arregimentador de razões e causas das próprias vivências para justificar a própria vida. É tampar os problemas com justificativas e assim sentir-se capaz, potente, ou vítima que expurga tristezas e medos, inseguranças e vacilações.
Em geral se lida com a culpa valorizando-a e assim, ao mantê-la, justifica-se ser bom, carente, incapaz e medroso.
Em certas situações a culpa é a alavanca do comportamento. Muitas vezes, somente pela vivência da culpa, ou seja, das tensões e pressões, surge a antítese, uma força diferenciadora, sinalizadora de comportamentos, pois à medida que aparecem os impasses, ocorrem as fragmentações, e a monotonia da divisão equilibrada é rompida.
Situações tensionantes podem ser reestruturadoras devido à dinâmica, ao movimento que desencadeiam. A culpa - tampando a impotência - é estabilizadora, impermeabilizadora de comportamentos e apesar de imprimir dinâmica, ela cria mudanças estagnantes. Em psicoterapia sabemos que pode haver mudança como ajuste ou como transformação. O psicoterapeuta existe como propiciador de antíteses, de transformações, de abertura para as possibilidades transcendentes e humanizadoras do indivíduo, que na questão da culpa, jamais será a transformação de sua vivência em função de exterioridades como absolvição social, perdão ou expiação religiosa, mas sim, o questionamento de seus medos e impotência, resgatando participação, congruência e disponibilidade.
Então, como lidar com a culpa? Aceitando, enfrentando, lidando com a própria impotência; vivendo o presente. A dinâmica relacional, vivenciada enquanto presente, permite a consistência do estar participando integralmente com o outro, com o mundo, com suas motivações.