«Do not forget that a poem, even though it is composed in the language of information, is not used in the language-game of giving information».
(Wittgenstein)
No centenário do nascimento de Ludwig Wittgenstein, em 1989, Joseph Kosuth realizou uma grande exposição no Wiener Secession Museum a que chamou The Play of the Unsayable. Composta de um texto e de diversas obras, a exposição explorava os limites da linguagem, dentro dos jogos propostos pelo filósofo, na tentativa de responder à questão que movia o trabalho do próprio artista: seria a arte, naquele momento, uma atividade pós-filosófica? E como era possível que a arte, dentro da realidade circundada pela
«(…) immediate gratification of the entertainment commodities of mass culture (…)»,
sem ceder à acessibilidade dos artefactos consumíveis, continuasse a ter público? Estas são apenas algumas das questões que Kosuth, um dos artistas que mais teorizaram sobre a arte contemporânea, propôs, numa exposição dedicada ao filósofo austríaco e aos artistas que, no seu entender, estavam conectados pelo trabalho que realizavam – desde artistas do início do século XX, como Marcel Duchamp, a outros, considerados pós-modernistas, como Marcel Broodthaers.
Filosofia e arte não são matérias que divirjam, mas possuem, como o próprio Kosuth afirma no texto que escreveu para o catálogo da exposição, perfis ontológicos diferentes. Não são auto-excludentes mas não se confundem, mesmo que joguem, em determinados momentos, os mesmo jogos traduzíveis numa linguagem, aparentemente comum. A primeira vez que fui confrontada com um trabalho do José Maçãs de Carvalho, pensei no em Kosuth e na reflexão, ainda atual, que este apresenta no seu texto-obra de 1989. Para o artista
«the work of art is essentially a play with the meaning system of art; it is formed as that play and cannot be separated from it (…)».
Ora, a obra do artista português, sobretudo a realizada nos últimos anos, que consiste na conceção de arquivos de imagens apresentados/instalados em formato vídeo, é um jogo que José Maçãs de Carvalho enceta com e contra o sistema da própria arte.
Da fotografia, seu meio primordial, José Maçãs de Carvalho encontra na imagem em movimento, sobretudo na imagem em movimento instalada, o lugar onde o pathos do seu trabalho anterior se pode, finalmente, aconchegar. Recolector de imagens, colecionador de histórias breves, a sua experiência num país outro, a China, mas num espaço quase caseiro, Macau, provocou-lhe a inquietação arquivística. Durante anos, após ter deixado o país, voltou à China, num projeto que durou 10 anos, para fotografar os seus ex-estudantes, as pessoas que encontrou, com quem conviveu. Mais que um gesto voyeurista, tratava-se de um desejo de permanência, ou de imanência, dele na memória dos outros e dos outros na sua própria narrativa que se construía do lado de cá, no país que era seu e onde as imagens que trouxe se foram configurando como obra.
O arquivo é o espaço privilegiado da memória, e da preservação da História ou das histórias, mas é, sobretudo, o espaço do esquecimento: arquivamos para guardar, para não termos que memorizar e, muitas vezes, para nunca mais voltar a ver. As imagens fotografadas que habitavam o arquivo pessoal do artista incomodaram-no ao ponto de o porem a pensar num dispositivo de exibição, de “mostração” deste manancial de imagens que mereciam, ou que precisavam de vir à luz. O próprio artista se assume como fotógrafo e é a partir deste papel que as suas imagens ganham vida e movimento. Ao mesmo tempo, a compreensão de que há demasiadas imagens, como disse Kosuth, produzidas pela sociedade de consumo e perfeitas para o entretenimento, e para o esquecimento, fez com que a escolha do dispositivo de exposição fosse fundamental, bem como o processo de seleção de imagens. Aqui não se tratava de inundar o espectador com milhares de informações visuais, mas de fazer com que este parasse, por um momento, destacando-se do fluxo quotidiano, e visse. Uma imagem apenas, uma imagem em loop, uma imagem que se fixa pelo movimento contínuo, uma imagem que não quer substituir mil palavras, mas quer significar qualquer coisa do espaço e do tempo, qualquer coisa que faz da arte este discurso outro, que não o da filosofia, mas que também faz pensar.
Há uma obra de Italo Calvino, Os amores difíceis, na qual o escritor italiano tenta, a cada conto, falar das dificuldades, dos desencontros, e dos encontros, entre casais da mais diversa ordem. Calvino conta as aventuras de um soldado, de um automobilista, de um empregado de escritório, de um míope e de um fotógrafo. Cada narrativa dá a dimensão do amor e dos seus (des)caminhos, consoante a profissão ou o papel que cada um ocupa. Num dado instante, ao narrar as aventuras de um esquiador, diz
«(...) e esse era o milagre dela, de escolher a cada instante no caos dos mil movimentos possíveis aquele e só aquele que era certo e límpido e leve e necessário, aquele gesto e só aquele, entre mil gestos perdidos, que importava».
É esse também o milagre da arte – encontrar o gesto exato, dentre os mil gestos possíveis, encontrar a imagem exata dentre as milhares que existem. Uma imagem a mais, ou a menos, um dispositivo que não seja adequado, uma seleção que não reflita o todo, como no aleph borgesiano – onde em cada fragmento se encontra a plenitude –, pode deitar por terra o trabalho de um artista. E na obra de José Maçãs de Carvalho, a cada novo filme/vídeo, a cada novo arquivo que dá a conhecer, vemos surgir este pequeno milagre, este gesto exato: a escolha perfeita dentre as escolhas possíveis. Os arquivos são, aparentemente, o lugar da ordem; mas sem uma bússola, um mapa, um esquiço, encontramo-nos diante do caos, pois tudo está ali, mas nada está a mão. É preciso saber encontrar.
Da fixidez da fotografia ao movimento do vídeo foi, no caso de José Maçãs de Carvalho, um passo executado com precisão e também, um passo necessário, para o artista e para a sua obra. Numa entrevista concedida em 2009, no âmbito do 31º Festival de Montemor-o-Velho, o artista fala do movimento que realizou em direção ao vídeo, sem, no entanto, perder a essência de fotógrafo que é visível em todo o seu trabalho. O movimento não esconde a fixidez da imagem captada e, em muitos casos, ressalta essa mesma fixidez, seja em obras como Arquivo e Domicílio (2014), inspirada no famoso escrivão de Herman Melville, em que entrevemos uma personagem a carimbar infinitos papéis, num gesto repetido e desnecessário, ou no plano fixo de Arquivo e Nostalgia (2012), em que vemos a cidade de Hong Kong ao fundo, ora enevoada, ora iluminada pelo néon e pelas luzes dos prédios, e acompanhamos o movimento dos barcos, que parecem sempre os mesmos e que, ao saírem do nosso campo de visão, desaparecem de cena e nada nos têm a dizer do fora de campo. O punctum, de que tanto falou Roland Barthes, está no fundo do quadro, nos imóveis que não se movem, mas mudam conforme a iluminação.
Mais que em vídeo, podemos pensar nos photogenic drawings de William Henry Fox Talbot (circa 1840): ali, as formas imprimiam-se no papel sem a mediação de um aparelho fotográfico. Era a luz, e a química colocada no suporte, que tornava o objeto visível. Visível na sua densidade, como se emergisse da sombra. Como em Talbot, a imagem vence a sombra e apresenta-se visível e, com a sua presença, diz o que o artista sugere. E há a música de fundo que serve para quebrar o silêncio, e serve também como guia para aquela cidade distante e presente, velha e nova, ocidental e oriental, que, do alto da nossa outridade, só podemos espreitar.
Para o teórico francês Jean-Louis Comolli, a mise-en-scène é a arte de “pôr em relação,” gesto que os meios de massa convencionais evitam – uma encenação que evidencie uma relação e que dê espaço ao devir do espectador. O jogo dos media possui regras muito claras e cada um ocupa o seu lugar predeterminado. Ao contrário da arte contemporânea, em que os lugares podem ser intercambiáveis (por isso Kosuth assinalou, com uma exposição, o centenário do filósofo austríaco, o homem que se debruçou sobre a presença, e o papel, do jogo no jogo da linguagem). A mise-en-scène na obra de José Maçãs de Carvalho é feita, constantemente, do gesto de “pôr em relação” – a imagem em relação ao espectador; a imagem documental que se ficcionaliza na e pela arte; as imagens dos outros que podem converter-se em imagens de nós.
Arquivo e Melancolia (2016) é, para mim, a obra mais emblemática da série no que diz respeito à encenação. Como pano de fundo, uma parede composta de parafusos, pregos, molas e restos de ferragens. A parede existe e está situada num espaço específico, o porto interior de Macau e foi fotografada pela primeira vez pelo artista em 1996. Passados mais de 10 anos, numa das suas viagens de regresso, ele revisita a parede, que continua no mesmo lugar, com a sua absurda arquitetura, semelhante ao monstro do filme japonês Tetsuo, obra-prima do cyberpunk: um ser composto de restos da sociedade tecnológica e consumista que já não sabe o que fazer com os seus despojos. A parede, que é na verdade uma espécie de montra de uma empresa de manutenção de barcos, sobreviveu, ou melhor, permaneceu, aparentemente a mesma, sabendo, no entanto, o artista, que ela se modificou. Mais uma vez, como em Arquivo e Nostalgia, o movimento ocupa o primeiro plano: são as pessoas que passam e que são captadas pela câmara do artista. Mas elas entram e saem de campo e a sua impermanência serve apenas para marcar um contraponto com a permanência daquela improvável parede, que ocupa o punctum do vídeo com a sua fixidez fotográfica.
Num e-mail enviado ao seu amigo e editor argentino Jorge La Ferla, Jean-Louis Comolli diz:
«Le présent est irréel, le spectacle est partout, la forme spectaculaire de l’aliénation domine partout: il apparaît que ce serait moins à la consommation, aux biens matériels, à la marchandise que s’articulerait la jouissance aliénée (…) mais désormais avant tout au spectacle, bien plus efficace, bien plus politique que la marchandise ».
O gozo alienado está mais próximo da representação, do espetáculo, que do objeto em si. E é por isso que defende que a lógica cinematográfica se deve opor à lógica do espetáculo. A lógica do cinema defendido por Comolli é a lógica da arte, aquela que resiste ao fluxo do entretenimento e que sobrevive, apesar de tudo, ao consumo fácil. É a lógica que preside ao último dos arquivos de José Maçãs de Carvalho, Arquivo e Democracia (2017).
Através de dispositivos diversos, vídeos e fotografias, imagens instaladas num espaço, José Maçãs de Carvalho dá corpo aos corpos fantasmáticos ou fantasmagóricos que circulam pelas ruas e que ninguém vê – empregadas ilegais, a maior parte de origem filipina. Aos domingos estes corpos ocupam os espaços das ruas onde estão localizadas a lojas mais caras de Hong Kong. Ocupam um espaço que não lhes pertence e confundem-se com as manequins expostas nas montras das lojas das grandes marcas da moda do mercado mundial.
Como nos arquivos anteriores, este não é um vídeo para ser visto num pequeno ecrã. É um projeto imagético que se expande quando instalado e que existe na lógica da própria instalação – a arte, mesmo a imagem digital, ou digitalizada, ocupa espaço físico e cria uma mise-en-scène específica entre o que se vê e o que se vive. Não é um espetáculo que circule impunemente pelos ecrãs, mas um dispositivo complexo que exige, do espectador, toda a sua atenção e também o seu corpo, em presença, num determinado espaço, para que possa visionar a obra. Como afirmou Kosuth, a obra de arte é um jogo constante com o sistema das artes. E contra o sistema das significações pré-fabricadas ou pré-estabelecidas.
N’Os Amores Difíceis, Calvino conta a aventura do fotógrafo: Antonino, homem obcecado pela fotografia, pela captação e coleção de imagens que consigam tornar o instantâneo permanente. Ora, ao apaixonar-se, Antonino dá-se conta de que tem de escolher entre captar o instante e vivê-lo. Na sua angústia crescente, em busca da foto perfeita que captasse o instante no seu momento absoluto, descobre, por fim, «que fotografar fotografias era o único caminho que lhe restava, aliás, o único caminho que ele havia obscuramente procurado até então».
José Maçãs de Carvalho diz, numa entrevista, que a sua obra tenta, de alguma maneira, captar o indizível, aquilo que as palavras não são capazes de dizer sozinhas, ou que as imagens não suportam, que as ultrapassa. Talvez o arquivo, uma espécie de fotografia de fotografias, de registo dos registos, seja o caminho que o artista encontrou para mostrar/falar dos instantes que escapam, que escorrem, que fogem. Os momentos entre os interstícios. Aquilo que só a arte, na sua especial categoria ontológica, tem a capacidade de dizer.