Quando meu filho nasceu eu estava no meio de um Mestrado de Literatura Brasileira. Minha vida era assistir três tardes de aulas no campus da universidade, estudar e cuidar de um bebê pequeno. Sabia que era um tempo de grandes adaptações a uma vida nova: aprender a ser mãe, escrever uma tese e terminar o curso. Dei conta desta enorme tarefa com alegria, adorava as aulas e também o tema que tinha escolhido para trabalhar. E gostava da minha nova condição no mundo, a de ser a mãe do menino. Mas tive os meus momentos de insegurança e cansaço, embora tudo pulsasse brilhante e novo ao meu redor.
Todas as manhãs depois de fazer o menino mamar eu ia pra janela do quarto pra fazê-lo arrotar. Naquela hora do dia passava pela rua um rapaz todo vestido de branco, muito moreno, o corpo belamente definido, professor de capoeira, tocando um berimbau. Durante meses o vi passar na rua enquanto eu embalava meu filho. O som do berimbau e aquele belo homem atravessando a calçada me lembravam que o mundo era um lugar exuberante onde podia-se dançar com alegria. De certa maneira, penso hoje, ele me ajudou a transpor aquele período de solidão em que me dividia entre os livros e meu filho.
Moro no bairro Bom Fim em Porto Alegre, meu filho agora tem 26 anos, continuei estudando ainda por muito tempo e a vida andou. Todas as noites antes de dormir, lá pelas 23h:30, um homem jovem atravessa a minha rua carregando um carrinho de supermercado, anda rápido e barulhento pela rua vazia e fria. Quase sempre já estou na cama esperando o sono chegar, neste momento em que nos lembramos das coisas banais do dia que passou misturadas com as coisas que temos de fazer no dia seguinte e mais, muito mais. É quando a noite desce sobre nós, imensa e escura, lembrando do nosso desamparo, das nossas saudades, dos sonhos perdidos, dos desejos inconfessáveis. Sempre penso que estamos todos adormecidos numa grande planície, aterrorizados com o poder da escuridão que ilumina tudo o que mais tememos e assim adormecemos, medicados e seguros, para esquecer que somos seres de tristezas, faltas e pavores.
Ele dá muitas voltas na quadra antes de ir embora. Aliás, não sei se ele dorme ou continua caminhando por outras ruas, e o som do carrinho é um som que deve um incomodar muita gente. Mas quando ele aparece – e ele sempre aparece – agradeço a Deus pela sua presença. Porque me sinto provida com a presença dele, um louco que vara a noite carregando os nossos medos e os nossos pavores, sinto que não estou só no mundo, que ele vai comigo, rua afora, noite adentro e que essa presença errática é como uma bênção que me faz adormecer quase serena. Um louco e um carrinho, e dentro dele os nossos fantasmas e pavores noturnos. Vou com ele para onde ele for, que deve ser onde estão os outros loucos que sabem que a substância da vida é feita disso também, escuridão, abandono, medos, frustrações, e tristezas, as mais amenas. Vou quase feliz porque andar pelo escuro acompanhada é muito melhor do que ir só.