Donald Trump venceu, democraticamente, as eleições para presidente dos Estados Unidos da América.
Democraticamente. 48 % do povo votou nele, ele ganhou, e nós levamos um murro no estômago. O mundo não estava preparado para esta vitória, parecia longínqua, irreal, cinematográfica. Foi um choque, uma surpresa, prova brutal e crua de que, nos Estados Unidos da América, tudo é possível.
Construímos nas nossas mentes uma imagem complexa e idealista de uma nação que sempre conseguiu alimentar as vísceras do heroico, da coragem, da mudança, da união patriótica. Construímos nos nossos corações um quadro de esperança, de civilidade, de direito e respeito, porque no fim da história o final é (quase) sempre feliz.
Foi a comunicação social, as redes sociais, as opiniões e as sondagens que toldaram e cobriram com uma cortina de diamantes a visão racional de que nos Estados Unidos tudo é possível? Tudo, repito, tudo é possível! Mas achamos, até este acontecimento último, que até para o “tudo” há limites. Um homem primitivo, sexista, racista, imoral e sem vergonha não seria eleito presidente dos Estados Unidos. A brincadeira tem limite. Todos gostamos da novela, dos celeumas, dos vaticínios que nos fizeram mastigar durante dias as barbaridades que foram ditas durante esta campanha. Donald Trump é um homem do show business e entreteve toda a gente com as suas farpas pontiagudas.
Mas, acreditamos nós, para arregaçar as mangas e levar um país às costas o assunto já é diferente. Uma eleição presidencial, alegadamente, é um espelho cultural e social do estado de espírito de um país. É um reflexo do epicentro emocional e moral de uma coletividade.
Pois sim, a comunicação social construiu castelos na areia, deu a derrota como garantida, explorou a ridicularização e humilhação de uma personagem que alimenta debates, audiências e atenção. E nós acreditamos. Acreditamos que o cenário não era tão negro. Podia ser renhido, mas não era possível. Sim, foi uma derrota para a comunicação social porque contaram a história mas não lhe puderam dar um final feliz. Mas não levam este peso às costas sozinhos, não o poderiam fazer. A culpa é, também, nossa. Nossa porque quisemos ouvir esta história e porque sempre pensamos que a viagem era atribulada mas chegava a bom porto. Nós todos quisemos acreditar nisso e cruzamos os dedos, fechamos os olhos e fomos até ao fim com a certeza de que os americanos nunca iriam eleger uma caricatura.
Mas não foi só porque a comunicação social decidiu dourar o desfecho. É por causa de Clint Eastwood que nos deu um Million Dollar Baby; é por causa de um Bob Dylan que canta uma nação, um povo, uma cultura; é por causa de Martin Luther King Jr. e pelo sonho que se tornou a visão de muitos; por uma Eleanor Roosevelt que deu de sua alma a dedicação plena à luta pelos direitos humanos; por ser uma nação que explodiu de graciosidade quando elegeu o primeiro presidente afro-americano da sua história; por causa de um Armstrong na Lua; por transmitirem, todos eles, de todas as formas, o seu amor à pátria. Tudo, todos, sempre nos fizeram acreditar que os Estados Unidos da América não iriam eleger Donald Trump para seu presidente.
O problema é que esta é uma nação fraturada, enraivecida, desempregada e derrotista. O problema é que continuamos a ver massacres em escolas - porque as armas continuam a ser essenciais e parte da realidade americana – massacres com fundamentos racistas, homofóbicos, histéricos e xenófobos – porque a pátria está a ser invadida por seres indesejados que rouba emprego e esposas. O problema é que os discursos de Michelle Obama são inspiradores mas as mulheres continuam a ter oportunidades profissionais diferentes das dos homens. O problema é que os americanos desconfiam e censuram as suas forças policiais e alimentam conspirações que os faz temer a própria sombra. O problema é que os americanos não estão bem e querem estar melhor e, portanto, votam na mudança. Têm esperança na mudança, e votaram nela.
Nós temos acesso a esta informação, mas não acreditar que um povo desesperado prefere adotar medidas extremas. O problema é que a nossa surpresa resulta da imagem que nós próprios construímos de uma nação que nos dá, todos os dias, provas de que não é o que queremos que seja. O que precisamos que seja. Para nos inspirar, para nos medir, para nos regular pela grandeza. A surpresa não foi o Trump ter ganho, nem a comunicação social ter narrado uma história baseada na esperança. A surpresa é acordar num mundo que não reconhecemos. Porque não quisemos, tudo esteve sempre à nossa frente. Mas, mais uma vez, a América surpreendeu-nos, e a culpa é nossa. God bless America.