Desde sempre, o homem se sente e se vê inscrito no espaço, no lugar, projectando-se no tempo.
Perdidos no passado, os gigantes da Ilha da Páscoa perscrutam os céus e o horizonte, complexo das pirâmides desenham os céus na terra e os círculos de pedras de Stonehenge parecem compor a coreografia de um ritual de observação. Entre sagrado e profano, observatório, mapa ou templo.
Na tradição pictórica, as janelas em contra-luz emolduravam o homem, a cena, o encontro. Figurações com, contra a ou na paisagem ao fundo. A Madona e o Chanceler Rolin (c. 1435) de Jan Van Eyck, S. Lucas desenhando a Virgem (1435–40), de Rogier van der Weyden, a enigmática Mona Lisa (1503-06)… No Barroco, as cúpulas insinuavam o infinito lembravam esse além divino, inatingível… Enfim, o homem no mundo, o mundo do homem, o homem e o mundo com ou sem a transcendência ao fundo.
E como se representava essa paisagem-mundo?
Vamos, por agora, ao segundo termo e deixemos o de abertura para outro texto.
A representação do mundo é trabalho da velha cartografia, mas os mapas têm uma história que deriva do olhar que os configura.
Primeiro, a representação segue as relações entre céu e terra. As cartas celestes e os planisférios, assinalando os lugares desconhecidos, deixando-se embeber de mitos e anunciando seres exóticos. Evoquemos alguns passos desse itinerário.
Tudo começou antes, ainda, da escrita reconhecida, antes, ainda, dos mapas em placas de argila sumérias e papiros egípcios.
As cartas celestes. Desde a esculpida em marfim de mamute (com c. 32 500 anos) com a constelação de Órion às desenhadas nas cavernas de Lascaux, com as Plêiades (de há c. 33 000 a 10 000 anos), ou na gruta de La Tête du Lion (de há + 21 000 anos), com a constelação de Touro e as Plêiades, passando pelo célebre Atlas Farnese, inspirado na estátua helenística do Titã Atlas com a esfera celeste aos ombros, e pelos manuscritos, como o Mapa Celeste de Dunhuang (705 e 710 d.C), ou os do persa Abd al-Rahman al-Sufi (Livro de Estrelas Fixas, 964), ou, ainda, as do De Composicione Spere Solide (1440), até aos globos que beberam na experiência da expansão marítima para sul que, além de outras terras, revelou mais 12 constelações (globo de Jodocus Hondius, de 1601) e, depois, ainda mais 11 (Firmamentum Sobiescianum, 1690, de Johannes Hevelius).
A Antiguidade Clássica oferece-nos os de Aristóteles e Hiparco, com latitudes e longitudes, e o de Ptolomeu, da Terra num círculo, Erastótenes de Cirene, etc.. e até Homero ensaia uma carta cósmica no próprio escudo de Aquiles.
A Idade Média representa o mundo através de diversas perspectivas, mas sempre determinadas pela religiosidade: de forma rectangular (dentro do mundo tabernáculo, do tratado Topografia Cristã de Cosme Indicopleustes); com "T" sobre "O" (por influência de das Etimologias, de Sto Isidoro, com Jerusalém no centro, a Ásia em cima, onde estava o paraíso, a Europa à esquerda e a África à direita); manuscritos conhecidos como Beatos (de acordo com o Comentário sobre o Apocalipse, atribuído a Beato de Liébana), com uma terra antípoda de monstros; com a Terra como parte do corpo de Cristo (caso dos do Saltério de Psalter, de 1225 d.C, ou o Ebstorf, de 1234, o de Hereford, de 1290).
Depois, a cartografia foi-se tornando mais e mais objectiva, científica, desde os portulanos, com a rosa-dos-ventos, aos planisférios. A compilação Portugaliae Monumenta Cartographica, com mais de 600 mapas desde 1485 até 1700, demonstra e ilustra bem essa história que acaba por conduzir até à sua certidão filológica em carta de Manuel Francisco Carvalhosa, 2º Visconde de Santarém, datada de 8/12/1839 de Paris.
Céu, terra, mar. Entre estes dois últimos: os oceanos e os continentes.
Os continentes pareceriam inequivocamente definidos pelas massas territoriais, mas a verdade é os critérios podem ser físicos, culturais, políticos ou históricos, além de terem vindo a multiplicar-se até que assentámos em 5 (Europa, Ásia, África, América e Oceania). Depois, o critério físico redistribuiu tudo por 4: América, Eurafrásia (Europa, África e Ásia), Austrália e Antártida. O tectónico redistribuiu também por 6 em 2 versões, tradicional e geológica, respectivamente: Europa, África, Oceania, Antártida, América e Ásia; América do Norte, América do Sul, Eurásia, África, Oceania e Antártida. Por fim, no espaço anglístico e na China, são encarados 7: América do Norte, América do Sul, Ásia, Europa, África, Oceania e Antártida (com a Oceania substituida pelo continente australiano e América Central incluída no norte-americano). E ainda há os super-continentes, os…
Vamos a outros mapas: os da segurança. Também aqui mudam os modelos. O do Hemisfério Norte e Sul, particularmente centrado no Atlântico (Google Earth). O de Sir Halford Mackinder e o seu Midland Ocean, uno e indivisível. O da Lusofonia (em torno do Atlântico e a chegar alhures, a Timor), o da Francofonia, o da Hispanofonia… Enfim, sobre este assunto, remeto para as estimulantes exposições de Armando Marques Guedes , que até chega a rever o Atlântico através da visão de Tintin a partir da Lua e que evoca A Room with a View (1985), de James Ivory, adaptação de uma novela de E. M. Forster (1908).
Actualmente, a Nasa obtém outros, surpreendente, de vias insuspeitadas há décadas atrás, com satélites e sondas espaciais.
Cada época oferece a sua representação do universo e do homem nele. Os mapas são as imagens nesse espelho de saberes, crenças e desejos, codificação e cristalização de imaginários. Às vezes, enigmáticas cartografias, como esse velho mapa de Piri Reis (1513) que muitos crêem revelar um conhecimento que só recentemente se terá atingido . Mistérios que autores como Graham Hancock perseguem em jeito de Indiana Jones e fizeram ‘despertar os Mágicos’ nos anos 60 (O Despertar dos Mágicos, 1960, de Louis Pauwels e Jacques Bergier)…