A capacidade de se deixar afetar pelo mundo é gesto formador da arte, construída a partir do encontro do eu e do outro ou dos outros em um ser, encontro capaz de revelar, por meio da construção formal, o belo que se manifesta nas frestas do cotidiano. Portanto, o olhar do artista, pelo menos de parte deles, está atento à experiência, sendo capaz de captar uma espécie de recado do mundo, de perceber “essa voz de tudo/ alojada no silêncio”1 das imagens. Assim é o olhar de Roberto D. S. Nascimento, quando fotografa. Observador arguto, mas sutil, sabe compreender o outro e a si, na medida em que acolhe, generosamente, no próprio ser, as cenas do mundo.
A compreensão da realidade se dá, para Roberto, também por meio do discurso acadêmico. Graduado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), na cidade de Assis, no Brasil, é professor efetivo do curso em que se formou, na mesma instituição. Fez ainda estudos na área da filosofia, ao realizar pesquisas de mestrado, doutorado, assim como o estágio de pós-doutorado, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), tendo desenvolvido parte da sua formação na École Normale Supérieure de Lyon. Ensaísta, publicou, além de outros textos, o livro Deleuze: signos e a irrupção do fora (2023).
Suas várias facetas – voltadas à filosofia, à psicologia e à arte – estão interligadas, como podemos perceber por meio das respostas de Roberto D. S. Nascimento à entrevista a seguir. A singularidade do seu olhar pode ser conferida ainda em algumas imagens feitas por ele, presentes nesta página, assim como no site.
Cristiane – Para iniciar nossa conversa, faço uma pergunta simples, mas difícil: por que você fotografa?
Roberto – As perguntas simples costumam ser as mais difíceis (risos). E essa dificuldade, complexidade, da sua pergunta talvez ressoe com o espanto daqueles que, na existência, olham, percebem, se surpreendem de algum modo e aí precisam dar forma ao afeto vivido.
A fotografia é uma dessas formas, pertencentes ao campo da arte mais do que ao da mera técnica. Creio que o ato de fotografar melhora o nosso olhar, não no sentido friamente objetivo e tecnológico de ver com mais precisão e mais fidedignamente o objeto, mas sim no sentido de sentir mais, de perceber mais, de olhar mais para o mundo que nos cerca e, a partir daí, criar expressão com isso tudo. E não importa se somos profissionais ou não, se produzimos obras de real valor artístico ou não. Claro, isso importa para o campo do que se produz como obras de arte reconhecidas, mas mesmo um fotógrafo amador sem talentos extraordinários está inserido numa relação complexa com o próprio olhar que é decisiva para novas aberturas em sua própria existência.
Fotografa-se, canta-se, dança-se, escreve-se poesia porque pertencemos ao mundo e sentimos necessidade de criar algo capaz de dizê-lo, de apresentá-lo, e de compartilhar isso com outros humanos. Em meados do século XIX, quando a fotografia em sua prática ainda era novidade à grande maioria, a fotógrafa britânica Júlia Margaret Cameron disse que “a capacidade de se deleitar é o dom de prestar atenção”. Essa frase é muito emblemática porque diz respeito à possibilidade de olhar para as coisas através de novos recortes. Diga-se de passagem que Cameron começou a fotografar com 48 anos, após ganhar um aparelho fotográfico de presente de sua filha.
Cristiane – Em alguns momentos, percebo que busca captar o que sobra da imagem, como a mistura das sombras ou o corpo ausente, presumido no contorno da roupa no varal. Ao fazer isso, o que encontra?
A imagem fotográfica, em seu princípio, foi entendida como cópia objetiva da realidade, como documento capaz de captar com frieza e imparcialidade o mundo a nossa volta. Hoje entende-se que isso é impossível, que toda imagem fotográfica também é uma construção. Mesmo a imagem de uma ressonância magnética é uma construção, que envolve interesses, investimentos, prioridades, maneiras de codificar e um certo modo de ver e de separar o homem dentro de um contexto específico.
Entre o objeto e a imagem, há toda uma dinâmica, um caos, uma imanência de forças diversas, de memórias e de cultura pessoal que tanto dirigem nosso olhar como às vezes quebram, perturbam as representações costumeiras.
Acho que essas e outras forças insuspeitas podem sobrar ou vibrar nas imagens. Poderíamos chamar isso de a presença do aparentemente ausente. Ou o não dado percebido, no dado sentido. E às vezes sentido com uma sutileza tão intensa e envolvente que precisamos parar e olhar melhor.
Fotografia 1: Imagem capturada pelas lentes do fotógrafo Roberto D. S. Nascimento.
Cristiane – Vejo no seu trabalho a presença da imagem refletida na água, numa ligação do alto e do baixo. Por que esse desdobramento do que se vê é importante para você?
Acredito que a gente nunca vê tudo. E aquilo que a gente não vê, ao menos não tão clara e distintamente como sonharia um cartesiano ortodoxo, é o que renova a cada vez a existência. Veja que falo em renovação e não em salvação, porque a existência é demasiado infinita para a salvarmos; mas há gestos de renovação de quando em quando, e isso já traz um ar mais respirável.
Tem tantas coisas que podem se dobrar, desdobrar e redobrar em uma poça d’água, ou no olhar do animal que anda num pasto!... E o que se dobra, desdobra redobra? Um bruxo certa vez salientou que são forças de um irredutível fora com forças atuantes no homem, tais como pensar, sentir, imaginar. Quando nossa sensibilidade é atravessada por essas forças, novos mundos podem se abrir, ainda que enquanto rastro. O deleite está em que, quando isso acontece e um novo recorte se constrói, ganhamos o dia.
Cristiane – Você se descreve como alguém que está entre psicologia, filosofia e artes. Como as três facetas se relacionam?
O filósofo Gilles Deleuze certa vez disse que, além das artes, as ciências e as filosofias, cada uma à sua maneira, também constroem outros modos de perceber, modos que, nos encontros, fazem da distância aquilo que também aproxima. De fato, o monumento estético constrói expressões que são diferentes do conceito filosófico ou da função lógico-científica. Apesar de diferentes, esses três tipos de perceptos costumam ressoar entre si, gerando diversas acelerações e desacelerações um no outro.
Com efeito, em psicologia, em filosofia e nas artes, o real nos desafia (ou mesmo nos força) a pensar a partir do que vemos/sentimos. Nesses três campos, somos convocados pela própria existência a apresentar novos recortes, mobilizando a amplitude de nosso ser de maneira integrada e não em fragmentos isolados. E nós até podemos, por preguiça, medo ou condicionamento, dar respostas reificadas sobre o que nos toca, mas sabemos que não é suficiente.
Notas
1 Lisboa, Adriana. Recado. In: Pequena música. São Paulo: Iluminuras, 2018, p.76-7.