Assistimos a um espetáculo sádico, a uma ignomínia, à aflição incomportável de uma jovem mulher de 16 anos alegadamente vítima de uma violação coletiva. Trinta e três homens, por detrás de máscaras trágicas. Depois vem o vídeo, o troféu, a conquista e o deleite. O deleite de olhar e mostrar a prostração esmaecida de uma corporalidade sem vida. Para além do perpétuo problema da desigualdade, do machismo e da misoginia enfrentamos agora a questão da sociedade do espetáculo. O direito à vida, a igualdade e a dignidade humanas são ameaçados pelo desejo de ribalta, de protagonismo, de visibilidade.
Não é suficiente o ato cruel de trucidar a magia, de assassinar a crença no bem, de arrasar a beleza na perspetiva. A cada 11 minutos é violada uma mulher, no Brasil. A cada 11 minutos se viola a integridade física, a estabilidade psicológica e a coerência emocional de alguém. A brutalidade do ato é indescritível, e as consequências são imensuráveis. Desta vez multiplicou-se por trinta e três. Sobreviver fisicamente a um acontecimento deste tipo deverá ser extremamente penoso e difícil. Sobreviver mental e emocionalmente a um acontecimento deste tipo deverá ser um ato indescritível de coragem. Imagine-se a multiplicação do suplício. A projeção deste caso é chocante, pela sua dimensão, e pela divulgação do ato nas redes sociais pelos próprios flagiciosos.
O que leva alguém a desejar disseminar o espetáculo insuportável da impotência? O que leva trinta e três homens a querer fazer transbordar os olhos do mundo com a tragédia do ignóbil? O gosto pelo macabro, o prazer da submissão, o desdém pela vida humana e o desrespeito pelos outros. Mas, para além disto, a sociedade do espetáculo. A exibição. A ostentação das marcas do ignóbil: “Olha onde o trem bala [comboio de alta velocidade] passou”. A sede de protagonismo, de mostrar quem manda, de impor vontades e domínios. Domínios territoriais, domínios morais e domínios de género.
Colocar em evidência atos de natureza maldosa, impiedosa e imoral tem vindo a ser prática cada vez mais frequente em todos os cantos do mundo. Violações sexuais, bullying, homicídios, castigos e punições são atos que, remontando às perspetivas passadas, devem ser (aos olhos de quem a monstro aspira) executados em praça pública. Para criar impacto, para ensinar lições e mostrar a moral da história. Só que hoje, estas atrocidades não se disseminam apenas nas praças públicas de uma localidade. Espalham-se pelas praças públicas globais. O desejo de espetacularização, da transmissão em direto e o fascínio pela atitude terrífica do algoz incentivam o aumento da crueldade.
É difícil parar um comboio que está já em andamento. Mas podemos rever as perspetivas e redefinir prioridades. Deleitar-nos com o delongado e secundarizar a rapidez. A pressa de ser e de parecer corroem as mentes e as mãos. Estaremos a ir de encontro ao abismo moral e a guiar-nos pela inércia. Não basta o choque e a mágoa. Devemos perceber de que forma os holofotes podem ser úteis para interromper a espiral da barbaridade. Relevar os ecrãs e entender que o mundo vai para além da virtualidade, existe mais do que aquilo que é partilhado e exposto através dos media e das redes sociais. O maravilhamento leva ao êxtase e à cegueira. Não devia. Devia levar à educação, à responsabilização e à consciencialização. Desliguem os holofotes. Há que lidar com o negro e com a falta de luz.