"Todos los diálogos de amor se parecen.
Todos tienen acordes delirantes".
Luís Buñuel
No ensaio Metafísica do amor, Schopenhauer reflete sobre o porque de, a cada ano, ouvir falar de diversos casos de duplos suicídios de amantes desesperados que, devido a circunstâncias adversas, preferem tirar a própria vida a deixar o seu amado. Para o filósofo isto não faz o menor sentido e não consegue compreender como é que “pessoas que, certas do amor mútuo, esperando encontrar em seu deleite a mais elevada bem-aventurança, não preferem por diligências exteriores enfrentar todas as situações e padecer cada desventura a renunciar, com a vida, a uma felicidade além da qual nenhuma outra maior pode ser por eles pensada” (2000:5). Schopenhauer, nesta obra, tenta perceber a lógica por trás dos atos desesperados provocados pelo amor, ou pela ideia do amor, difundida pela arte. O problema é que, por mais que o filósofo encontre respostas às questões que coloca, continua a haver duplos suicídios ou pequenos grandes dramas provocados por este sentimento tão paradoxal e, aparentemente, tão vital para os seres humanos.
Vida e morte, dor e prazer – presenças constantes nos filmes desde que o cinema descobriu a sua vocação narrativa. A paixão, signo ligado ao desespero, pode também aquietar, longe do maniqueísmo bem ou mal, o que causa desespero pode, ao mesmo tempo, ser fonte de salvação. Os filmes que escolhi analisar neste texto partem desta premissa: as personagens que atuam, em cada uma das narrativas, estão presas entre o desespero e a obstinação. Cada uma, ao seu modo, sente que o amor é a resposta para todos os males e a única forma de felicidade e, por outro lado, reconhecem, mesmo a contragosto, que o amor é também fonte de desespero e de frustração. Todos os amores nestes filmes, ou mesmo, todos os amores que o cinema nos apresenta, são representados conforme uma ideia de amor ocidental que se tornou, através da literatura romântica e dos meios audiovisuais, um drama que envolve desencontros, reencontros, desenganos e descaminhos. Nalguns casos, a ficção nos apresenta um final feliz, noutros, a felicidade é apenas um vislumbre, um delírio, um desejo e nunca uma resposta que se encontra através de ou por causa do amor.
Na Metafísica do amor, Schopenhauer defende que este sentimento é uma invenção literária. Para o filósofo alemão, o “amor” é uma criação humana que serve para mascarar o desejo, este sim, real e devastador. Na tentativa de perceber como o cinema utiliza os seus recursos formais e discursivos para apresentar/representar este sentimento excessivo e difuso, escolhi dois filmes, de diferentes décadas, que têm em comum o facto de contarem histórias de amor marcadas pelo signo do excesso: excesso de amor, de paixão, de desespero, de desejo ou de delírio. Se o amor é uma invenção literária, logo podemos dizer que o amor é ou constitui-se como linguagem. Ora, a linguagem do cinema, que descende da literatura burguesa do séc. XIX, facilmente se adequa à narrativa literária e não só adapta os textos, como transforma em imagens e reveste de novos significados velhas e novas histórias, que tratam do drama demasiado humano das relações e de tudo aquilo que elas envolvem e que as impulsiona.
Gertrud – o amor é tudo
Em 1964 o cineasta dinamarquês Carl Dreyer realiza o seu último filme: Gertrud. Baseado na peça do dramaturgo sueco Hjalmar Söderberg, o filme é considerado, ao lado de A Paixão de Joana D’Arc, uma das obras-primas de Dreyer que começou a filmar em 1918. Há características comuns que podemos apontar em toda a sua cinematografia, o que o torna, sem sombra de dúvida, um realizador autoral cuja marca registada é visível em cada filme. Pode-se dizer que a obra do cineasta dinamarquês enquadra-se no cinema que era feito então nos países do norte da Europa. No início do séc. XX detectamos, pelo menos, duas tendências marcantes nesta cinematografia: um forte cariz realista e a presença visível de influências teatrais. O que pode parecer paradoxal à partida, realismo e teatralidade, converge num discurso fílmico calcado nos diálogos e/ou monólogos ao mesmo tempo que retrata, com precisão cirúrgica, a sociedade burguesa e boémia do início do século XX.
A influência do Cinema Expressionista Alemão aparece, sobretudo, na luz. A intensidade dos claro-escuros é utilizada de maneira profundamente significante não só nos filmes de Dreyer mas também no cinema que se realizava na Dinamarca, Suécia e Noruega. Na cinematografia do realizador dinamarquês, encontramos sempre presente um cuidado artesanal com o decor e uma busca incessante de soluções técnicas para resolver problemas de representação propostos pelo guião. Mais de uma vez Dreyer afirmou que a sua preocupação com a técnica estava diretamente vinculada à questão fulcral do seu cinema - a capacidade de revelar os sentimentos das personagens. Numa entrevista concedida a Michel Delhaye, em 1965, e publicada no nº 170 dos Cahiers du Cinema, o cineasta afirma: “Para mim o mais importante não é captar as palavras que dizem, mas sim os pensamentos que se escondem atrás destas palavras.”
Gertrud é um filme que vive, sobretudo, dos pensamentos por trás das palavras. A peça que deu origem ao guião tem um cariz autobiográfico: Söderberg vivera uma situação semelhante e escreve a peça como reação ao sofrimento que este amor lhe causara. Gertrud é uma mulher livre e apaixonada pela ideia do amor que ela não vivencia no seu casamento. O marido, um político em ascensão, não lhe dedica o tempo e o afeto que ela julga merecer e, portanto, decide buscar o seu ideal numa relação com um jovem compositor. Esta relação nada mais é que a recriação da sua primeira e grande história de amor, também com um músico, Gabriel Lidman, o “poeta do amor.”
Juan Antonio García, numa obra dedicada ao cineasta dinamarquês, diz que Gertrud é “uma personagem romântica, no sentido literário do termo.” (1997: 168). A ideia de amor que leva Schopenhauer a refletir é, indubitavelmente, aquela difundida na sua época, descendente direta dos amores de Werther. O amor romântico, conforme o filósofo, funciona como uma justificação moral para o desejo. Os seres humanos necessitam procriar e, para tal, revestem um ato primevo de teorias e poemas na tentativa vã de encontrar uma resposta mais elevada para as suas necessidades básicas, semelhantes às dos animais irracionais. Na Metafísica do Amor, que se completa com a Metafísica da Morte, Schopenhauer discorre sobre as pulsões que movem as pessoas: a vida, que se propaga e se perpetua através da reprodução, e a morte, que é uma certeza da qual todos tentam fugir.
Ao refletir sobre a obra de Proust, Nicolas Grimaldi diz: “A experiência amorosa ia pois fazer-nos experimentar a presença daquilo de que a experiência estética só nos fazia experimentar a ausência: o amor ia cumprir as promessas da arte.” (1994:17). Gertrud é, ela mesma, uma artista. Num dado momento seu marido diz que o amor é para artistas e boémios. E é entre artistas e boémios que ela julga ter encontrado a resposta à sua busca incessante da completude: os seus amantes, primeiro Lidman e a seguir o jovem compositor, vivem e respiram a arte e, portanto, conseguem, melhor que ninguém, viver e respirar o amor. O drama da personagem é que nenhum deles pensa o amor como ela, nenhum está disposto a abdicar de tudo para viver apenas em função do objeto dos seus afetos. Diante da impossibilidade de vivenciar o amor total, Gertrud decide retirar-se e viver uma vida solitária, longe do burburinho e dos encantos da cidade, numa casa simples, no campo, que reflete o seu estado de espírito de ermitã.
Dreyer não só realizou o filme como escreveu o guião. Gertrud é um filme de palavras, um texto dramático, que se desenrola através de diálogos que se revelam, pela maestria do realizador, em monólogos. Começamos com uma cena de Gertrud, em casa, a falar com o marido. Todo o espaço é teatral, os movimentos dos atores obedecem rigorosamente às entradas e saídas do palco na cena italiana e não há profundidade de campo, vemos o fundo do palco que avança para o espectador fazendo com que as personagens apareçam planas, sem densidade corpórea. Raramente os olhares se cruzam e parece que cada um está a falar sozinho. O outro é apenas uma figura de cena, não responde aos apelos que lhe são feitos, porque aquele diálogo, de facto, não existe, é um solilóquio interpretado por diversas personagens. Cada um, à sua maneira, fala sobre o drama que os aflige, a incapacidade de amar e o desejo de ter o amante, que não é nunca uma pessoa. Como na obra de Proust, os amores, em Gertrud, são ideais e não corporificáveis. Quando se encontra com o ser amado, o amor desvanece e parte. Grimaldi considera que um dos pilares da recherche proustiana é a descoberta de que amamos no outro “exatamente aquilo que uma obra de arte anuncia: um outro mundo.” (1994: 14).
O cineasta enuncia a busca da personagem através de uma mise en scène crua que deixa o espectador entrever a sociedade da época através dos elementos de cena: móveis, obras de arte, luminárias e da postura sóbria e distante de cada uma das personagens. O excesso de amor que obseda Gertrud nunca é revelado nos gestos, mas sim na sua ausência, na aparente frieza do seu olhar e no seu porte quase aristocrático. O excesso vem do pensamento transformado em discurso – o que nos revela a origem ideal deste sentimento, presente na linguagem e distante do quotidiano. Na cena do reencontro entre Lidman e Gertrud, quando o antigo amante pede que ela volte para ele e afirma que nunca deixou de amá-la, a imagem que temos é a de duas pessoas sobrepostas, como se de uma só se tratasse, mas que olham em sentido contrário, revelando, neste jogo de cena, aquilo que o discurso irá reafirmar: não há mais salvação, aquela história viveu e morreu no passado impossibilitando um final feliz no presente. Para ela, Lidman conseguiu afastá-la gradualmente quando decidiu que o seu trabalho era mais importante que o amor que dizia sentir. Este gesto discreto, que vemos através de um flashback, é-nos apresentado pela ausência em cena do artista e pela presença, marcada por pequenos gestos quotidianos, de Gertrud. O vazio da casa e uma frase encontrada ao acaso fazem-na decidir abandonar Lidman e, também, abandonar a esperança de encontrar, noutros homens, a sua ideia de amor. Ela afirma que decidiu vivenciar os prazeres carnais e esquecer o amor, que neste filme, como na obra de Proust, existe apenas como ideia e como vir-a-ser.
A cena final é composta pela presença de uma Gertrud envelhecida, na sua casa de campo, a receber a visita de um velho amigo. Conforme Gómez García, os técnicos que trabalhavam com Dreyer tentaram dissuadi-lo a deixar esta cena, pois contrariava a tendência realista que marca a obra do cineasta e também este filme. A cena permaneceu como um posfácio, presente também na obra do dramaturgo sueco. Gertrud lê um poema que escrevera aos 16 anos, composto de três versos. Todos eles terminam com a estrofe: mas eu amei. Como se o amor fosse a justificação de uma vida e estivesse acima de todas as coisas. Desta forma, Dreyer fecha o filme apresentando-nos um retrato coerente da personagem que escolhe como epitáfio, a frase: Amor Omnia. O amor é tudo. Gertrud despede-se do amigo, que ao longe, no fundo do quadro, acena/encena, repetidamente, um adeus.
A Mulher do lado – Ni avec toi, ni sans toi
François Truffaut realiza seu penúltimo filme em 1981, La Femme d’à côté, uma história íntima e passional que reflete as influências que sempre o acompanharam, Roberto Rossellini e Jean Renoir. De Rosselinni, Truffaut absorveu o gosto pelos cenários naturais e a sensibilidade na maneira de conduzir os atores, sobretudo as mulheres. De Renoir, seu compatriota, encontramos na obra de Truffaut a delicadeza dos temas e a simplicidade com que ele contava histórias complexas. A Mulher do lado tem guião do próprio realizador que já adaptara, em variadíssimos filmes, livros de géneros considerados “menores” pela crítica literária, como o policial noir e a ficção científica. Talvez porque acreditasse, como Renoir, que a grande literatura é inadaptável, provocando sempre comparações que desfavorecem o filme e assim, o melhor é homenagear grandes histórias de autores que não tinham a pretensão de fazer grande literatura.
O filme começa pelo fim. Uma tragédia anunciada e enunciada por uma vizinha que narra, como se estivesse a falar para a televisão, o drama que ela viu desenrolar-se e que já vislumbramos porque, ao fundo, enquanto ela aparece em plano americano, vemos, e ouvimos, ambulâncias e carros de polícia que se distanciam lentamente. Começar pelo fim não é uma inovação da Nouvelle Vague, escola do realizador francês, responsável, ao lado do Neorrealismo Italiano, pela profunda transformação do cinema nos anos 50. Truffaut admirava os clássicos do cinema norte-americano, realizadores, como Billy Wilder, que não obedeciam cegamente às regras do Studio System mas que conseguiam imprimir a sua assinatura a cada nova obra. Em 1950, Wilder apresenta uma das suas obras-primas, Sunset Boulevard, a história de uma atriz decadente e de um sistema, também decadente: o de Hollywood. Começa o filme com um homem morto, na piscina, a narrar a história para explicar por que razão foi aquele o seu fim. Este recurso, em vez de provocar o desinteresse na trama, aguça a curiosidade dos espectadores que querem ter a oportunidade de espreitar o passado, como um voyeur que conseguisse a proeza de viajar no tempo: algo que só a arte, e especificamente a arte do filme, consegue proporcionar.
O drama de Wilder é grandiloquente enquanto o drama de Truffaut é discreto, quase não se percebe que as personagens, famílias burguesas e estáveis do subúrbio, estão prestes a explodir. Um jovem casal, com filhos pequenos, vive o sonho burguês, numa pequena cidade nos arredores de Grenoble, até que a casa ao lado, desocupada há algum tempo, passa a ser habitada por outro casal, sem filhos. Aos poucos descobrimos uma tensão latente que aparece primeiro de forma discreta - trocas de olhares, encontros casuais. Logo há uma explosão que revela a história por trás da aparência: a mulher do lado e o vizinho foram amantes há sete anos atrás e o reencontro provoca o reacender do amor e do desejo, agora interdito, porque ambos estão casados com outras pessoas.
Como Gertrud, Mathilde é uma mulher que acredita no amor. Mas ao contrário do amor cerebral e literário da primeira, a ideia de amor para ela é mais passional e violenta, tão violenta que ela não consegue resistir e sucumbe, literalmente, quando percebe que o seu desejo, interdito, é correspondido mas impossível. A sua fuga é para dentro de si mesma fazendo com que ela afunde numa depressão que a conduz ao internamento num hospital. Truffaut conduz a história sempre de forma discreta, num cenário natural que torna toda a história mais realista e credível. As personagens são iluminadas sutilmente, sem grandes contrastes de claro-escuro mas dando especial densidade às sombras e à meia-luz. Sabemos que é um filme porque o realizador, no começo, apresenta-nos a vizinha que narra, para nós, espectadores, a história daqueles casais. De resto, a câmara permanece discreta, observando o que se passa e ajudando-nos a penetrar nos espaços que, fora do ecrã, nos seriam vedados: a intimidade das casas. Como seu mestre, André Bazin, Truffaut acredita que a imagem pode ser revelada pelo olho da câmara e, para que isto aconteça, o cineasta deve deixar que o mundo, que ele construiu, dê-se a ver.
O amor, neste filme, é transformado em doença. Mathilde não consegue viver com o seu amante e tão pouco consegue viver sem ele. Para Grimaldi, o amor em Proust só é descrito como uma patologia: “Por que só amamos aquilo que nos faz sofrer e por que o amor é a figura mais comum de uma maldição (…)?” (1994: 8). O autor da Recherche só vê, como opção, deixar de sofrer ou deixar de amar. Podemos nos questionar, como faz Schopenhauer, por que razão o casal escolhe o caminho da tragédia. Como é possível que pessoas cultas e civilizadas não consigam resolver, de forma culta e civilizada, um problema de amor? Mais uma vez o amor só existe no excesso: neste caso, de desespero. A calma decisão de se retirar do mundo, tomada por Gertrud, não aparece como uma hipótese viável para Mathilde. O que a leva, no auge da sua paixão, ou da sua patologia, a matar o seu amante e a suicidar-se em seguida.
É interessante observar que, tanto no filme de Truffaut quanto no de Dreyer, a ideia de amor que move as personagens tem origem nos dramas românticos citados por Schopenhauer no seu ensaio: são amores desesperados e únicos, irrepetíveis, e só se repetem como farsa, o que ocorre no caso de Gertrud e o jovem compositor, ou como reencontro, caso de Mathilde e sua verdadeira e única paixão, Bernard. Tanto num como noutro caso, a saída mais racional é negada e as personagens escolhem ou o retiro ou a morte. Como Werther, personagem emblemática de Goethe, Gertrud e Mathilde são pessoas frágeis que não suportam o peso da frustração da Vontade – motivação primeira, segundo o filósofo, que leva “um João a encontrar a sua Maria”. Schopenhauer não nega a existência do amor para além da literatura. Reconhece-o na vida quotidiana: “Os Werthers e Jacopo Ortis não existem só nos romances; mas a cada ano na Europa há para se mostrar pelo menos meia dúzia deles: (…) [todavia tiveram uma morte ignorada]: pois seus sofrimentos não encontram outros cronistas senão os escrivães de protocolos oficiais, ou os redatores dos jornais.” (2000: 3-4).
O amor é um assunto sério e, como tal, o filósofo decide dissecá-lo para melhor perceber que sentimento é este que causa, segundo ele, tanto barulho. A sua reflexão leva-o à conclusão de que a importância do tema é vital, porque o amor é o impulso que move as pessoas em direção às outras, promovendo encontros que irão garantir a sobrevivência da espécie, a composição da próxima geração. Nos filmes analisados a questão levantada por Schopenhauer sequer aparece, não há, em nenhum dos casos, para além da ideia de cópula uma ideia de concepção. Gertrud e Mathilde são movidas pelo desejo de plenitude – só aquele outro específico seria capaz de completá-las e sem eles a vida não fazia sentido. O que não nega, apesar de paradoxal, o pensamento do filósofo, pois o que as move, mais que o amor, é a vontade de vida que, nos dois casos, só existe pelo outro e através dele.
A Metafísica do Amor
O filósofo alemão conclui a sua Metafísica do Amor dizendo que as pessoas não amam individualmente, amam, no outro, a possível eternidade que ele pode representar. Amam, enfim, a humanidade e a sua própria espécie, amam a ideia de continuar, mesmo que esta continuação implique sofrimento, porque a Vontade de Vida é maior e é, conforme Schopenhauer, o que nos move. Na Metafísica da Morte ele analisa a contracorrente desta Vontade de Vida, que equilibra as pessoas entre o desejo pelo movimento e a consciência da vindoura quietude.
Grimaldi, ao estudar o imaginário proustiano, conclui que o amor é, na obra do escritor francês, fruto da vontade de conhecer mundos, de desvendar-se a si mesmo através do outro. O amor, mais que a arte, provoca sensações inusitadas e promete, mesmo que não cumpra, encontros e plenitude que, no caso de Proust, nunca são realmente plenos ou satisfatórios. Porque se ama o que não se tem, o que se dá a ver mas que não existe realmente - o outro é uma construção daquele que ama.
O cinema, através da sua já secular história, herdou da literatura a capacidade de narrar, de criar mundos imaginários, de preencher vazios com imagens. Se analisarmos a história do cinema encontraremos um género que existe desde o princípio e que foi, ao longo dos anos, adaptando-se aos públicos, aos desejos e aos tempos: o drama de amor. Nos filmes analisados, os realizadores são também guionistas, o que dá um ritmo especial ao texto que subjaz à imagem. As palavras são ditas pelas e para aquelas imagens específicas. De alguma maneira são filmes que marcaram a filmografia dos realizadores: Dreyer, em diversas entrevistas, assumiu que nutria um especial afeto por Gertrud, que foi seu último filme. Truffaut, entre um drama de guerra e uma adaptação literária, realiza um filme íntimo e pessoal, como se marcasse um retorno aos princípios que o movimento que ele ajudou a criar nos anos 50, a Nouvelle Vague, difundiu: pequenas histórias quotidianas de pessoas sem importância que poderiam ser qualquer um de nós.
Duas histórias de amor contadas de maneira quase íntima e documental. As personagens procuram a plenitude, querem encontrar, ou reencontrar, o amor, a ideia que possuem do amor, que se concretiza numa pessoa específica, que só pode ser vivido num dado momento e cuja experiência só se repete como farsa. Abbas Kiarostami disse que está sempre a fazer o mesmo filme. Todos os grandes realizadores de cinema estão sempre a fazer o mesmo filme. Uma história que continua, que não tem fim, porque justifica a própria espécie, porque reveste de humanidade e poesia o desejo, demasiado humano, conforme Schopenhauer, de imortalizar-se.
Referências Bibliográficas
Chabrol, Claude et alii (eds.). (1999). La Nouvelle Vague. Paris, Petite Bibliothèque des Cahiers du Cinéma.
Gómez García, Juan Antonio. (1997). Carl Theodor Dreyer. Madrid, Fundamentos.
Grimaldi, Nicolas. (1994). O Ciúme - Estudo sobre o imaginário proustiano. São Paulo, Paz e Terra.
Sadoul, Georges. (1983). História do Cinema Mundial (3 Vol.). Lisboa, Livros Horizonte.
Schopenhauer, Arthur. (2000). Metafísica do Amor, Metafísica da Morte. São Paulo, Martins Fontes.