O fascismo é a mais fácil das ideologias. Realmente, há poucas coisas mais cômodas ou tão palatáveis.
Um fascista não tem dúvidas, só certezas. Ele simplesmente sabe a razão para todas as mazelas do mundo e, por isso, nunca vê a necessidade de questionar ou de provar o seu ponto de vista.
E como não há incerteza, o fascismo funciona como um útero quentinho e confortável. Sair desse ambiente é desagradável, confuso, doloroso. Por isso o fascista não sai. Ele fica ali protegido pelos seus privilégios de classe, pela sua etnia, pela sua religião. É o lugar perfeito, de onde ele pode apenas atacar, sem nunca precisar se defender.
Ali, dentro desse ventre ideológico maldito, o fascista se esconde covardemente do mundo real, como se o seu discurso de ódio cego, desprovido de lógica, evidência empírica ou razão, pudesse protegê-lo de um sistema social e econômico em plena decadência. Foi assim no começo do século XX, é assim no começo do século XXI.
Como é fácil ser fascista! Deve ser um grande alívio ter sempre na sua narrativa um antagonista para escarnecer. Imersos numa ideologia que preza pela uniformidade absoluta, não é necessário preocupar-se com entender e abarcar outras formas de ser, de existir, de coexistir na mesma sociedade. Tudo é organizado, robotizado, limpo, higienizado, asséptico.
O fascismo chega a parecer o instrumento de construção do mundo ideal até que a gente descobre o que já deveria saber desde o início, se estudássemos mais, se a burrice crônica não fosse um problema sério que nos assola, e se reproduzíssemos menos porcaria: o “outro” não existe. O “outro” é uma ilusão discursiva para fazê-lo buscar uma solução que não existe no lugar errado. O “outro” somos nós mesmos. Porque quando vivemos em sociedade, o único sujeito possível é “nós”.
O povo que Stalin condenou à fome e à miséria, os escritores e poetas que matou, não eram o outro. Eram todos soviéticos.
Os judeus exterminados com requintes de sadismo por Hitler, no que ficou conhecido como um dos maiores genocídios de todos os tempos, não eram o outro. Eles eram alemães e austríacos.
As crianças mortas no bombardeio a Guernica não eram o outro. O sangue nas mãos de Franco naquela tarde covarde, quando um líder pela primeira vez na História autorizou um ataque contra alvos civis em seu próprio país, era puro sangue espanhol.
Aqueles torturados na América Latina durante intermináveis anos de regime militar ao longo do século XX também não eram o outro. Era gente confundida na fila do pão. Eram estudantes que precisavam de liberdade para ler, aprender, questionar. Era quem ousava pensar diferente. Era qualquer um, e todos nós.
A verdade crucial que o fascismo oculta é que o outro é uma extensão de mim mesmo. E que, portanto, não posso, sob nenhum argumento, ser a favor de políticas que cerceiem direitos básicos, que firam os direitos humanos. Por mais que a princípio pareça que essas medidas não afetam diretamente a mim. Dentro de uma sociedade tudo reverbera, como uma pedra jogada num lago. Posso não ser atingido em cheio, mas em algum momento a onda que aquela violência, inicialmente localizada, gerou chegará invariavelmente até mim. Justa ou injustamente.
Não importa quantos fardos de pão Franco tenha mandado para os vilarejos de Andaluzia depois do final da guerra. Não importa quanto a tecnologia aeronáutica se desenvolveu na Alemanha, nem quantos analfabetos deixaram de existir na Rússia. Não importa como a criminalidade urbana era menor naquela época. A narrativa oficial do século XX já deixou isso muito claro, mas diante do colapso do capitalismo contemporâneo parece que a nossa memória tem tido lapsos severos: diante do fascismo só existe, existiu e existirá um lado certo. Talvez no presente, o seu conservadorismo extremista, racista, classista, homofóbico e machista passe desapercebido, pode ser até que te deem razão. Mas a História não perdoa. E certamente não nos perdoará.