Em julho de 2014 publiquei aqui mesmo um artigo em homenagem ao escritor Ariano Suassuna, então recém falecido. No texto, entre outras coisas, relatava a vivência ao visitar com o professor Ariano e colegas do curso de Arquitetura, pela primeira vez, ainda na década de oitenta, a oficina do escultor, pintor e ceramista Francisco de Paula Coimbra de Almeida Brennand, mais conhecido como Francisco Brennand.
Na oportunidade, a chegada à oficina se deu pelo Rio Capibaribe, através de uma pequena balsa, e não pelo caminho normalmente utilizado pelos turistas: uma estrada de terra margeada por Mata Atlântica nativa.
A estrada serpenteia por entre as árvores, levando os visitantes cada vez mais longe de barulhos urbanos e construções. Ouvem-se pássaros, sons de vento nas folhagens e, aos poucos, vai-se enxergando uma paisagem absolutamente rural, em plenos limites da Zona Oeste da cidade do Recife... Segundo Brennand, essa estrada sombreada é um “túnel verde, mágico, que prepara para entrar num mundo de encantamento. O mundo da fábula, do passado e quem sabe, do futuro”. Simplesmente a oficina. Lugar onde o artista trabalha o barro e dá vida a seres inimagináveis...
Brennand iniciou a criação desse espaço mágico em 1971, quando pediu ao pai a autorização para ocupar uma antiga olaria da família e nela instalar seu ateliê. Recebida a autorização, iniciou de imediato o projeto de reconstrução da Cerâmica São João da Várzea. Tratava-se de uma fábrica fundada em 1917 pelo seu pai para produção de tijolos e telhas. A indústria abandonada, incrustrada nas terras do Engenho Santos Cosme e Damião foi o local perfeito para o artista desenvolver a sua arte, com a qual já trabalhava, tendo sido “aluno” de outro grande escultor pernambucano, já falecido, Abelardo da Hora, que fora convidado por seu pai para conduzir o setor de criação da Cerâmica São João, quando Brennand tinha apenas quinze anos.
Desde cedo Brennand demonstrou interesse pela arte. Aos 19 anos criou sua primeira escultura, em argila, mesmo período em que montou seu primeiro ateliê. A peça foi chamada pelo autor de “Cabeça de Débora” e teve como modelo a jovem que viria a se tornar sua primeira esposa, em 1948.
A formação do artista incluiu uma passagem pela Itália (possivelmente de onde se originou a inspiração floral de muitas de suas peças) e a montagem de um ateliê em Paris, onde foi aluno de André Lothe e frequentou o ateliê de Fernand Léger, buscando se aperfeiçoar na pintura. No entanto, ao visitar uma exposição de cerâmicas de Picasso, em 1949, teria ficado muito impressionado e se interessado irremediavelmente por essa expressão artística.
Na trajetória de formação de Brennand muitos artistas tiveram influência, como Cícero Dias, Gaudi, Miró, Gauguin entre outros. Após sua primeira incursão pela Europa, o artista retornou ao Brasil, mas logo voltou ao continente europeu, em 1952, para aprofundar seu aprendizado em técnicas da arte cerâmica.
No entanto, apesar de todas as influências e, segundo ele, de dever muito à Escola de Paris, o artista diz nunca ter esquecido de ser brasileiro e que aqui foi o lugar que escolheu para desenvolver sua obra... A partir de 1971 e ao longo das últimas décadas o espaço da antiga fábrica vem sendo transformado pelo intenso trabalho do escultor, tendo se tornado um complexo artístico extremamente peculiar, que alia a arquitetura à escultura, em harmonia com a paisagem.
Na chegada à Oficina, já se veem os galpões da antiga olaria guardados por muros e cercas e um jardim extenso... E intenso! Descortina-se uma gema escondida no verde do ambiente natural. Obras de arte já são vistas à entrada. Guardiões saltimbancos diante do edifício parecem proteger o local. Uma fonte. Algumas peças isoladas espalhadas pela grama. Criaturas primitivas, algumas de forma rude e brutal ao olhar, surgem da terra; mas ao mesmo tempo atraem pela originalidade. Parecem trazer um quê de ancestral, como vindas do barro de um tempo longínquo, como o da criação do homem, pelas mãos do artista.
Após transpor o portão, o visitante é levado ao acesso do museu-oficina-galeria através de uma esplanada. Um pátio onde arcos laterias e torres “recheadas” de pássaros traçam o caminho. Parecem espreitar do alto quem adentra o lugar, protegendo-o e a seu silêncio... Imponentes, no topo das torres, os animais de cerâmica compõe o visual desse acesso magnífico. Quase impossível que um visitante não se tente a fazer uma foto nesse local. É daquelas perspectivas que convidam a serem registradas.
Na entrada da esplanada, no piso e em todas as obras e lugares, vê-se a marca de Francisco Brennand: um símbolo de heráldica que remete ao arco e flexa de Oxóssi, o orixá rei das matas e das artes, o que demonstra seu interesse pela simbologia africana e não há dúvida que a presença dessa imagem em todas as peças e ambientes confere maior identidade a esse universo cultural.
Uma frase do escultor chama a atenção em um painel, também no início da esplanada: “Não interrompam este silêncio! Não interrompam este sonho!”. E nesse ambiente somos chamados a calar para que a arte fale.... Em recente entrevista na TV, o artista afirmou que uma vida não será suficiente para concluir a sua obra, o seu sonho. Aos 88 anos e cheio de entusiasmo e criação, Brennand segue fazendo o seu trabalho, incansavelmente.
Hoje funciona no local uma fábrica de ladrilhos, em pacífica convivência com o museu, que conta com mais de 2.000 obras de Brennand espalhadas por jardins e extensos galpões. São 15.000 m² construídos ou reconstruídos pelo artista, que trabalha nesse ambiente há 45 anos, dos 62 de sua carreira de escultor, pintor e ceramista. Uma vida inteira dedicada à arte.
A espécie de átrio que se segue à esplanada possui uma construção: o templo central com uma cúpula azul, de onde pende por um cabo de aço um grande ovo de cerâmica. Trata-se da obra “Ovo primordial”. O elemento representa a vida, a criação, a imortalidade... Por trás dessa pequena construção há um lago artificial onde podem ser vistos cisnes negros e outras aves a compor um cenário quase teatral. Paineis, esculturas diversas. Figuras femininas e masculinas. Criaturas indefinidas. Místicas. Míticas... Vênus. Falos. Ovos gigantes. Cabeças, aves e peixes são vistos por toda parte, antes mesmo de se chegar aos salões de exposição.
Em um canto, vê-se também uma citação de Heráclito: “Tudo flui”, ao lado da pequena queda dágua que alimenta o lago. Destacam-se nesse espaço as esculturas de Adão e Eva, colocadas em nichos, separadamente.
Ao lado desse ambiente externo, os galpões da antiga fábrica exibem milhares de peças. O visitante caminha por entre seres mítológicos, cabeças torturadas e tantos outros elementos. Uma grande riqueza escultórica sobre sentimentos e natureza humana. Elementos primitivos, em cores diversas e tons de terra. Peças que vão ao fogo e no fogo se transformam. Vitrificam-se. Veios, cores novas, impensadas pelo artista, mas que dialogam com sua criação e a ela incorporam novos significados.
Pequenos detalhes demonstram todo o cuidado com o qual vem sendo reconstruído o ambiente da antiga olaria, que Brennand chama de “bosque sagrado”: uma pedra cerâmica com a ilustração de um peixe no fundo de uma calha por onde corre a água; ou a transformação dos antigos fornos em ambientes intimistas, com sua luz vermelha dramática em meio à escuridão e frieza. Um altar ou algo parecido. Quase um local de “oração” ou câmara “secreta”.
Voltando ao ambiente externo, observa-se por trás da esplanada uma praça dedicada a Burle Marx, grande paisagista brasileiro falecido em 1994. Trata-se de um ambiente de contemplação, um local aprazível com plantas e um gramado protegido por gradis de ferro que trazem o desenho da marca do escultor. A praça, com suas esculturas e águas, separa os galpões da antiga fábrica de um novo prédio: a Accademia, onde se encontram expostas aproximadamente 300 obras do artista, entre desenhos e pinturas... Apesar de muito mais conhecido pelas esculturas, Brennand possui extensa obra em pintura e, segundo ele próprio, para ser o escultor ele precisa pintar as peças... O que o torna mais pintor que escultor.
E quando pinta, Brennand assume outra linguagem. É quase um outro artista, ainda que sendo o mesmo. Numa multiplicidade de expressões, sua pintura é igualmente intensa à escultura. Igualmente forte e sensual.
Ao retornar da Accademia, o visitante encontra em seu caminho, na parte exterior, um grande painel com flores tropicais azuis em fundo branco, outro local também muito utilizado como cenário para fotos e que traz à mostra um pouco do Brennand muralista.
Também existe uma linha de objetos utilitários e decorativos comercializados no café da Oficina que atende os visitantes. São chaleiras, bules, cinzeiros, fruteiras, garrafas, compoteiras, potes, jarras, canecas, castiçais, sopeiras, entre muitos outros.
Uma tarde dedicada a passear pela Oficina Bennand pode surpreender quem não conhece a cena cultural da cidade do Recife. É visita obrigatória. De fato, são duas visitas imperdíveis nessa região da cidade do Recife: Francisco Brennand e sua Oficina, como artista, e o Instituto Ricardo Brennand (artigo de agosto/2015), como colecionador. Diferentemente de seu primo, que cuida da arte, Francisco Brennand cria a arte. É o artista e ao mesmo tempo o cuidador.
Muitas de suas obras estão espalhadas pela cidade, pelo Brasil e pelo mundo, mas a completude de sua obra pode ser melhor percebida nesse lugar eleito pelo artista para “fincar os seus pés”... Lugar de suas raízes. Lugar onde viveu a infância: o bairro da Várzea.
Há, certamente, muito de passado e muito de futuro na arte de Francisco Brennand. Muito de mistério e muito de descoberta. Muito de sensualidade. Muito de primitivo. Muito de transcendente nos volumes que se enfileiram pelos galpões da oficina. Vida que explode em ovos, anfíbios, peixes. Homens, mulheres, falos. Se não for lugar-comum, digo que é lugar mágico. Um ambiente de arte explícita, que vem se transformando e ampliando ao longo dos anos mas sem perder seu “quê” de feérico.
O artista afirma que o elemento da sexualidade tão forte em sua obra é mais voltado para a reprodução que propriamente para o erotismo e por todos os lados vemos ovos representando a criação, o nascimento, a reprodução, a vida. A “eternidade”, no dizer de Brennand... Eternidade que se espalha, materializa-se e explode em suas esculturas, que parecem susurrar que este sonho não será interrompido, porque o espaço já está impregnado dessa eternidade...
Há obras do artista espalhadas por muitos lugares do mundo... Na capital pernambucana, para além dos limites da Oficina, há no centro da cidade um grande mural sobre a Batalha dos Guararapes (quando foram expulsos de Pernambuco os holandeses, em 1654) com 30m de comprimento e 2,5 m de altura. No aeroporto Internacional dos Guararapes, o painel “Sinfonia pastoral” feito em 1958 se destaca no saguão principal, havendo mais três esculturas em locais distintos do terminal. No Marco Zero da cidade, um parque de esculturas do artista, que inclui uma torre monumental com 30 metros de altura e 2,5m de diâmetro, encontra-se implantado sobre os arrecifes do porto. Em São Paulo há obras suas na Pinacoteca do Estado e também uma escultura na estação de metrô Trianon-MASP. No estado do Paraná o artista está presente no Museu Oscar Niemeyer e, nos Estados Unidos, um enorme mural se localiza na cidade de Miami, montado no prédio onde funcionou a empresa Bacardi, apenas para citar alguns.
Sem pretensões de crítica de arte, perpasso por essa grande obra um olhar de encantamento e digo que este texto não poderia ser menos qualitativo, menos adjetivo... Porque quem visita a Oficina não sai do ambiente com poucos adjetivos na cabeça e, certamente, estará impressionado de alguma forma.
A experiência humana, entre sacra e profana, encontra-se na arte única de Francisco Brennand, representando a jovialidade desse homem-artista de 88 anos, que se ocupou em 2013 de criar a própria urna para a guarda de suas cinzas, demonstrando naturalidade ao tratar da própria morte... É um homem que já se eternizou; que buscou inspiração nas entranhas da terra, no renascimento, nos sentimentos humanos, na natureza e na procriação; o que conferiu à sua obra o tom de constante renovação e infinitude.
E nessa arte explícita, os quatro elementos da natureza se unem em perfeita harmonia: a terra, no barro da matéria-prima. A água que flui pelos jardins em fontes e lagos, ou mesmo no Rio Capibaribe, que corta as terras da fábrica.
O fogo dos fornos que solidificam e transformam as peças, a centenas de graus centígrados, dando-as novas nuances e texturas, como num trabalho de parceria com o artista. E, por fim, o ar carregado de arte que se respira nesse “bosque sagrado”...
Lugar onde a arte flui num silêncio que não deve ser perturbado, posto que ali se realiza um sonho de eternidade... E é justo pedir que não se interrompa este sonho.
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Página oficial - Oficina Brennand
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Imagens aéreas da Oficina Francisco Brennand (Infinitus Conceito em imagens aéreas. Piloto: Nilton Cavalcanti)