Mais do que “a Nau Catrineta que tem muito que contar”, é a Nau da Saudade, que nos faz viajar de alma e coração até ao imaginário português.
De facto a memória é uma construção. Mais do que uma função mecânica de pura reprodução, a memória é uma função simbólica. Daí que Delacroix expresse este pensamento in Les Souvenirs “a lembrança não é a imagem mas um juízo sobre a imagem no tempo”.
Não nos podemos esquecer que cada um de nós é uma unidade de expressão, que a expressividade é uma característica fundamental do humano e que a realidade psicológica do sujeito é uma realidade imaginal.
As imagens do sujeito constituem realidades para o mesmo; então as imagens que ele, enquanto leitor vai possuindo, funcionam como jogos de espelho e como uma comunicação pedagógica.
Nesse processo existe o desenvolvimento de dois níveis de actividade: o cognitivo e o afectivo.
Na afectividade vamos incluir o conteúdo que os leitores atribuem à significação e perguntaremos se o que prevalece no momento das decisões e das escolhas a serem feitas é o cognitivo ou o afectivo. A literatura dá-nos a resposta como se pode perceber pela mágica afectivo-erótica da Ilha dos Amores camoniana ou pela Menina do Mar de Sophia.
Atentemos, pois, na própria natureza da linguagem. Palavras e expressões idiomáticas referem-se a entidades, acções, acontecimentos e relações, ex: “De alma e coração”.
Palavras e frases traduzem conceitos e por sua vez os conceitos consistem numa ideia do que são as coisas, as acções, os acontecimentos e as relações, o que quer dizer, segundo Damásio, que aqueles precedem as palavras e as frases na experiência diária de cada um de nós. Tudo isto para relembrarmos do que Ricoeur afirmou acerca da pré-estrutura narrativa que governa a própria vida quotidiana; neste caso “a ocidental praia lusitana”; “ um jardim à beira mar plantado”.
Será esse facto que nos vai ajudar no processo da nossa aprendizagem durante a vida, porque iremos recordar esse facto com muita maior consciência? Será que a consciência começa por um sentimento? Começa no pensar a língua portuguesa: “Vamos abrir o nosso coração”? Avaliando a hospitalidade com que recebemos o Outro?
Será que ao sentir o outro de mim mesmo adquiro uma maior consciência de mim? Uma consciência espiritual? A que me leva a festejar o Espírito Santo? A sentir o Azul mais Azul com Sophia de Mello Breyner?
A este propósito não esqueçamos a máxima pessoana “Sentir, sinta quem lê!”, pois tal como Ricoeur o concebe, um texto significa uma abertura para o texto como um outro meu, como um meu diferente, como um texto que pode dizer algo que não sei, algo que não conheço e até algo que me incomode e desconcerte.
Tudo fica preso ao meu imaginário e a alteridade confunde-se comigo mesmo.
O texto abre um mundo de indagações, inquietações e respostas para o leitor e isso tem que ver, como afirma Damásio com a “ideia que cada um de nós elabora de si mesmo”, com “a criação da pessoa que nós imaginamos ser a cada momento“ com “as memórias dos cenários que concebemos como desejos, anseios, metas e obrigações...” e que “exercem uma influência sobre o si de cada momento”, isto é, por outras palavras, o que Ricoeur afirma na sua obra Mémoire et oubli: “la mémoire, réduite au rappell, opére ainsi dans le sillage de l’imagination”; e retomando Damásio, há como que uma revisão das memórias das nossas experiências que está constantemente em curso e por isso a nossa fecunda imaginação será capaz de preparar “múltiplos rascunhos” para o argumento da nossa vida; sendo que, em determinadas circunstâncias, podem emergir dentro de nós certos aspectos de certas personagens que bem conhecemos: Adamastores? Velhos do Restelo? Ou uma Vénus renascida?
Aqui teremos talvez o que Ricoeur chama “la mémoire de l’imagination”. Sublinhe-se que toda a simbolização existente na linguagem é produto da função imaginativa, que se desenvolve ela própria, também fecundada pela linguagem e por isso sendo capaz de se converter numa atitude humana ético-estética perante o mundo, pois dela nasceram a filosofia e a poesia como “formas de saber”.
Como nos diz Damásio “Contar histórias precede a linguagem... a construção inteira do conhecimento, desde o simples ao complexo, desde a imagética e o não verbal até ao verbal e literário, depende a capacidade de cartografar aquilo que acontece ao longo do tempo”. Mas se nós cartografarmos com outra mais valia aquilo que possui um elevado conteúdo emocional? A nossa lusitana paixão? Os nossos Heróis do Mar? Ex: “Ó Mar salgado…”; “ Há mar e mar/, Há ir e voltar”.
E se a Nau da Saudade tiver uma geografia afectiva feminina? A resposta estará no Palácio da Independência, com uma Exposição que inaugura a 14 de Abril, 18h. Interroguem-se!