“Antes a frase ia além do conteúdo; agora é o conteúdo que vai além da frase.” Karl Marx
Dizem que Hegel decretou a morte da arte. De facto, no final da sua obra prevê, ou anuncia, uma morte que deriva de uma revolução. A arte morre porque se transforma em pensamento (ou em filosofia). Esta morte não é o fim, mas um novo começo em que a arte embarca numa viagem de autoconhecimento e de reflexão. A obra de Pedro Cabral Santo pertence à esta categoria de arte: autorreflexiva, autorreferencial e, de um modo muito particular, filosófica. O artista assume, através do seu discurso plástico, que a criação contemporânea é um processo de constante reinvenção, de apropriação de diferentes linguagens, o que faz com que, muitas vezes, tenhamos dificuldade em rotulá-la ou percebê-la fora do contexto em que nos é/foi apresentada e no qual foi criada/experienciada.
A geração a qual o artista pertence, ou que lhe foi dada como parte inevitável da sua genealogia artística, a dos anos 90, é usualmente referenciada como a geração da resistência, da politização dos discursos e da assunção, do que na altura era moda, do termo pós-modernidade. Esta pós-modernidade implicava um conjunto de procedimentos e de processos que eram transversais a todos, mesmo que cada um deles mantivesse a sua individualidade e a suas idiossincrasias. Um dos princípios mais visíveis das práticas artísticas desta geração era a escolha de materiais e suportes menos convencionais, o que não se constituía por si, uma novidade no universo da arte mundial, nem no universo, mais pequeno e circunscrito, da arte portuguesa pós-revolução de Abril. O que os diferenciava dos artistas que os antecederam era a atitude mais programática em relação aos novos suportes, bem como, o uso cada vez mais evidente, de linguagens híbridas e multimediáticas.
Localizar um artista numa geração é muito mais que uma mera questão cronológica, se bem que as questões de ordem puramente cronológica já se converteram, elas próprias, em objetos de arte, vide a obra de On Kawara e do seu exercício de tornar evidente e presentificável uma data, num evento por si só, memorável e digno de ser representado como tal. Localizar um artista numa geração é uma tentativa, mesmo parca, de encontrar um rótulo, uma definição, um lugar para a sua obra e um papel para ele representar. Assim sendo, a pertença de Pedro Cabral Santo à chamada Geração dos anos 90 não pode ser vista de maneira inocente, ou ingénua, ou mesmo puramente casual/cronológica. Ele foi um participante ativo e também difusor de princípios e de ideias que não só ressoaram no seu grupo, mas que reverberaram para além do espaço e tempo desta ação inicial e iniciática.
Passados mais de 20 anos, Pedro Cabral Santo continua a atuar, individual ou coletivamente, de forma experimental e transgressora, política e filosófica e, sobretudo, profundamente artística naquilo que a arte possui de seminal: inauguradora de tendências, primeva e disseminadora de sensações, de sentimentos e, sobretudo, de pensamentos. Porque a arte de Pedro Cabral Santo pensa-se a si mesma e pensa sobre a condição de ser arte na contemporaneidade, no tempo e no espaço que lhe calharam, e que nos toca, a cada um de nós, na nossa condição humana.
A exposição Absolutely, pertence a um tríptico e, como tal, a sua denominação é profundamente ambígua, porque a ideia de absoluto que este advérbio contém, é negada pela ideia de fragmento, orientadora do processo expositivo final: houve uma primeira exposição e haverá uma terceira a seguir. O título é mais uma referência ao universo Pop que o artista utiliza em muitas das suas criações, bem como é um termo que acaba por definir o próprio autor, presente, de maneira absoluta, em cada criação. As 3 (três) exposições funcionam num processo dialético cuja soma das partes será sempre maior que o todo e cujas obras referem-se e citam-se entre si, convocando memórias de criações anteriores e propondo novas leituras, porque expostas em nova configuração e diferente organização interna.
As peças mais que apresentadas são representadas, não só pelo reconhecimento consciente do autor da morte da arte, numa atitude hegeliana, mas também porque a sua obra enceta um persistente efeito cenográfico que promove a envolvência e que requer, do espectador, um estado de atenção elevado, pois só assim se consegue perceber as referências e as interligações. Sem no entanto abrir mão do lirismo das formas e da luz que geram, por si mesmas, significados que tornam cada obra única, independentemente da sua relação com o conjunto. E este conjunto é composto pela soma das obras e da obra do autor que pratica o exercício da deriva, que busca, incessantemente, o efeito de mise en abîme.
Turn left, turn left propõe uma viagem dupla, real e virtual, sem que se explicite qual é a instância de que falamos quando nos defrontamos com a peça central, um impraticável circuito de trilhos que, fragmentados, não se comunicam, impossibilitando qualquer percurso; e a representação audiovisual de uma estação de comboios vazia. Nesta peça o autor utiliza os meios que o caracterizam usualmente, que funcionam como uma assinatura: materiais pouco nobres, ou mesmo pré-fabricados, e o vídeo, que é um recurso usual, seja como linguagem autocentrada, seja como instalação, que é o caso da sua presença nesta obra.
Há alguns artistas cujo trabalho é centrado na matéria que compõe os objetos. No caso de Pedro Cabral Santo, a persistência, e a evidência do conceito, funcionam como o core da sua obra, “o conteúdo que vai além da frase”. Isto se torna evidente em peças como NON, Impressionism, White Sin e, evidentemente, na peça – S/título (Há uma coisa oculta em cada coisa que vês), em que o artista usa a palavra como matéria, remetendo à virtualidade da ideia, que está sempre além da frase. A parte matérica da obra é sobreposta pela imaterialidade do conceito, este sim, estruturante no processo de criação do artista. A matéria é apenas o suporte, que pode ser mais ou menos sólido, mais ou menos nobre. O que torna cada peça um objeto único não é a sua condição de objeto, mas a sua condição de arte: a sua incondicional condição de objeto artístico.
Cada obra é um vir-a-ser que se realiza na experiência instalada no espaço que a circunda. Ícaro (Up, up into the sky) é um totem, objeto fundador de uma cultura cuja lógica não obedece à linearidade do tempo histórico mas repete, infinitamente, o mesmo percurso circular – o herói parte para cumprir sua jornada e retorna para ocupar o lugar do pai. O Ícaro é um boneco de plástico, herói de novas jornadas e fruto de uma cultura flutuante e permeável. O artista fala-nos do herói de cada um de nós, de cada época, de cada circunstância. Eu sou eu e minha circunstância como disse o filósofo espanhol. E esta circunstância do eu aqui e agora é que determina os símbolos que a representam.
No contexto das referências à Cultura Pop, o artista, com a colaboração de Ruy Otero, (parceiro dentre muitos projetos, da criação do grupo Pogo), apresenta-nos o vídeo A deeply and profoundly space odyssey – onde vemos um excerto do filme 2001 – An space odyssey, de Stanley Kubrick. Pode-se ressaltar que a produção de vídeos no conjunto da obra de Pedro Cabral Santo está, de um modo geral, relacionada a obsessões e citações, em que o artista recorre ao uso do loop como estratégia de perversão da imagem citada. Uma imagem, ou uma palavra, repetida muitas vezes, perde o seu sentido original e converte-se apenas em signo - icónico ou sonoro, dentro daquilo a que Peirce chamou de primeiridade: o instante da quase-perceção, do quase-sentido. Assim, Cabral Santo aproveita-se desta deriva significativa e insiste na permanência das imagens/sons, que, visualizadas num loop infinito, geram novos e diversos sentidos ou, simplesmente, conduzem o espectador ao espanto, o mesmo espanto dos primeiros espectadores que se depararam com um comboio, projetado num ecrã, correndo na sua direção.
Na mesma lógica de criação simbólica, temos Jet out of the Sky (Sea of madness), a peça mais elaborada, em termos construtivos, que traz-nos, uma vez mais, traços da assinatura do artista: o uso de materiais diversos, e contrastantes, de referências simultaneamente pop e erudita e do recurso aos meios mecânicos/eletrônicos que atuam como propulsores de muitos dos seus objetos. A música dos Iron Maiden fala-nos de um certo desespero:
It's madness
The sun don't shine
On the sea of madness
There ain't no wind to fill your sails
Mas a obra transgride este sentido ao mostrar que é possível o equilíbrio, mesmo que delicado, entre forças que se repelem, entre suportes desiguais, em que o frágil sustenta o peso do forte e ajuda-o a manter-se de pé. A arte, dentre muitas coisas, é um simulacro. E neste caso, o foguetão simula uma partida, que sabemos, não vai ocorrer.
Água de Alfarroba e Full pertencem a outra matriz referencial. Neste caso remete-nos à altura em que a arte tomou consciência da realidade do capitalismo corrosivo e destruidor: tudo se compra, tudo se vende. Mesmo a água, um bem comum e pertença natural da humanidade, aparece engarrafada e rotulada, com uma “marca de autor” que confere aos produtos a categoria de gourmet. Por outro lado é-nos impossível vermos a peça Full sem que a nossa memória seja contaminada pela lembrança da Supermarket Lady, de Duane Hanson, obra que em 1969 lançava um olhar crítico à sociedade de consumo e ao modo de vida norte-americano. Se o carrinho da senhora do supermercado estava cheio, Full é um carro real e vazio, recostado a uma parede, numa posição de desequilíbrio, reforçando a sua inutilidade e o seu papel agora, não mais de objeto que se usa para encher de compras, mas de sobejo de uma sociedade que já não tem mais dinheiro para comprar.
Deparamo-nos ainda com duas peças que, aparentemente, destoam do resto: 250cm d´amour a Constanti e Su Pressione. A primeira, uma homenagem ao escultor romeno, um dos mais influentes do séc. XX, Constantin Brancusi, joga com a dupla peso/leveza: na obra, aparentemente suspenso, temos um corpo humano que resiste. Ao lado, dispostas na parede como que em repouso, duas pedras que, expectantes e espectadoras, assistem à suspensão do corpo humano, da sua estrutura, dos seus materiais, da sua realidade representativa. A suspensão de um corpo, mesmo que seja um simulacro, remete-nos ao processo de suspensão do corpo humano executada, em muitas performances e exposições, pelo artista contemporâneo Sterlac. São diferentes níveis de significação, mas a ideia de suspensão é a mesma: do corpo que se converte em arte. Ou, no caso de Sterlac, da arte que se utiliza do corpo.
Su pressione é uma peça de extrema delicadeza e, ao mesmo tempo, de uma profunda violência contida. A arma está sob pressão, mas não pode atirar porque no final do cano aparece um nó, o que aumenta a sensação de um ser-em-potência, prestes a explodir.
Dificilmente se pode afirmar, pela voz do artista, os seus sentidos. Mas as obras falam, mesmo que as palavras apenas rocem os significados. É preciso, nalguns casos, conhecer bem a língua do artista, para que possamos torná-la mais nossa. Manejá-la, como disse Marx, no 18 Brumário, ao falar das revoluções: “De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela.”. Pedro Cabral Santo assimilou a linguagem do seu tempo e aprendeu a manejá-la como se lhe fosse própria, produzindo, livremente, novos sentidos.
A arte não é um lugar que se visita inocentemente e de onde se sai incólume. Pelo menos não esta arte, não a arte deste artista comprometido naquilo que faz. E aquilo que faz também faz dele aquilo que ele é.
A ideia de deriva psico-geográfica proposta pelo artista, ocorre de maneira natural nas suas exposições que nos obriga a decidir os percursos, a parar ou a percorrer cada obra, num processo relacional que é, ao mesmo tempo, cultural e íntimo, porque o que o artista questiona, precisamente, é: o que resta do ser em meio aos gadgets que nos circundam e as redes que percorrermos e que, simultaneamente, nos atam? São obras que se complementam e que se repelem. Sobretudo que se pensam e que convocam os espectadores à refletir sobre a morte da arte e sobre a consequência deste facto na vida.