Instituído como museu público em 1819, o Museu do Prado em Madri é o tipo de instituição que praticamente dispensa apresentações. O edifício, circundado pelas estátuas de Velázquez, Goya e Murillo, alberga uma das maiores e mais visitadas coleções de arte clássica da Europa. O museu, que dá nome à avenida onde se localiza, consta como ponto turístico absoluto (verificável em qualquer guia da cidade, até os mais mequetrefes) e é o museu mais visitado por turistas na capital espanhola, só competindo com o Reina Sofia.
Já voltaremos aos turistas. De momento, falemos um pouco sobre o acervo. “El Prado” não impõe apenas pela quantidade pois possui obras representativas da vasta maioria dos grandes nomes da pintura europeia até a primeira metade do século XIX, e embora os “pintores da casa” (ou seja, espanhóis) tenham lugar de destaque na coleção, há outras pérolas de dar inveja até no curador do Metropolitan, como certamente é o caso do “Jardim das Delícias” de Hyeronimus Bosch.
No entanto, a joia mais valiosa do Prado (de acordo com o senso comum), motivo de orgulho e ostentação (e beijinho no ombro das inimigas), se encontra na sala 12, no segundo andar. Sim, esse mesmo que você está pensando: Las Meninas, de Diego Velázquez. É aquela sala oval cheia de gente (e câmeras) o dia inteiro, todos os dias - menos de segunda-feira, porque o museu não abre.
Como as salas do Prado são muito grandes e talvez pendurar um quadro solitário não fosse um bom aproveitamento de espaço, eles preencheram as paredes, como era mais lógico, com outros quadros do Velázquez mesmo, retratando mais membros da família real posando solenes em cavalos brancos e trajes de luxo. Quadros sem dúvida belos, mas sem o mesmo apelo, a mesma graça, o mesmo humor, e certamente sem o mesmo séquito de fãs, que o retrato da Infanta Margarita ao fundo da sala - retrato este que deveria ter sido uma pintura dos reis; mas que também é um retrato de um cara lá na porta dos fundos, de uma anã, de um cachorro e do próprio Velázquez, que por sua vez dá um semi-sorriso pra você lá de dentro do quadro enquanto você faz aquela cara de tonto, porque se dá conta de que é como se ele estivesse te pintando, e por isso você também está dentro do quadro, e então fica chocado de como é possível existir toda essa narrativa circular fora de um conto do Cortázar.
Porém, entremos por fim no âmbito do não acervo, ou melhor, do acervo invisível. Diante daquela que é considerada a obra-prima de Diego Velázquez há uma estátua em bronze concebida pelo italiano Matteo Bonuccelli (muito prazer!), que data de 1652 (ou seja, apenas quatro anos “mais velha” que Las Meninas). Ao entrar na sala 12, o corpo de uma mulher nua, em pose lânguida e sensual de costas para nós, é o único obstáculo entre o espectador e seu fetiche de consumo - quer dizer, entre o espectador e a obra-prima que ele foi fruir. Se um dia estiver no Prado, com tempo, faça o exercício de observar quantas pessoas, entre a multidão que passa a cada minuto por aquela sala, chega a realmente ver o outro lado da estátua, e suas reações.
A estátua de Bonucceli se chama “Hermafrodita”, e sim, a linda mulher de curvas perfeitas desenhadas no bronze tem também um pênis. E de repente, você se vê tragado por essa cena com um quê surrealista, de estar sendo pintada pelo Velázquez, com toda aquela multidão, os vigias espanhóis - com sua habitual falta de paciência - dando bronca nos turistas - com a sua habitual teimosia em não desligar o flash -, na frente de uma hermafrodita pelada que só você vê. Que bom seria se em outros contextos a presença de um trans-gênero chamasse tão pouca atenção ou gerasse tão pouco desconforto. Mas sabemos que infelizmente não é assim, e que o planeta Terra ainda é um lugar preconceituoso para viver, em geral.
A “Hermafrodita” faz parte de um conjunto de peças cuja função parece ser a de meramente preencher espaços, porque simplesmente não é vista, apesar de sua privilegiada localização. Voltemos, portanto, aos turistas. Pensemos em qualquer grande museu no mundo. Quem enche as galerias da Galleria degli Uffizi? Quem faz fila na bilheteria do MoMA e na porta do British Museum? Quem lota soberbamente as salas do Musée D’Orsay? Eles (nós), os turistas. E no museu contemporâneo somos todos visitantes-turistas.
E quem é o turista contemporâneo, senão aquele que, com a necessidade febril (e fabril) de realizar o máximo de atividades no menor tempo possível, não consegue fruir dos espaços, mas somente passar por eles – e consumir, é claro. O consumo é a única experiência que valida tudo, da presença /permanência num determinado lugar até a aquisição de conhecimento.
Veja bem, não somos mais os flâneurs do século XIX, os exploradores urbanos, os espectadores da modernidade. Mas em certa medida, como viaja-se mais que nunca, cremos que somos. Balzac definiu a flânerie como “gastronomia para os olhos”. Hoje, ao contrário, nossa relação com o espaço não conta com o benefício do tempo e, portanto, realmente não somos mais capazes do ato de observar, de deter o olhar e dar-nos conta do que realmente sucede à nossa volta. Cometemos inúmeras gafes porque simplesmente não entendemos alguns códigos de conduta essenciais nos espaços alheios, porque, é óbvio, para isso teríamos que ver o que de fato está acontecendo ao nosso redor. No entanto, nossas viagens não passam de uma longa lista de pontos turísticos a ser ticados. E se você vai a todos, é como se tivesse esgotado todas as possibilidades naquela cidade, se tornou um especialista e pode falar com propriedade sobre a mesma. E se não vai a todos, é como se a visita tivesse sido infrutífera, incompleta, de menor qualidade.
Apesar das desproporcionais filas diárias nas portas do Louvre, Prado, Metropolitan, entre muitos outros, seria um erro pensar que isso se deve a que o espectador médio sente um prazer real na visita ao museu, ou que tem condições de apreciar qualquer coisa lá exposta mais além do “é bonito/eu gosto” ou “é feio/eu não gosto”, que somos mais cultos que em gerações anteriores à nós. A aquisição de cultura (ainda que superficial e banalizada) é um fetiche de consumo. E é por esta razão, e não por outra, que os museus hoje em dia entram em qualquer rota turística, em escala global.
E é evidente que, se a vasta maioria do público do museu é composta por turistas, a visita “cultural” segue a mesma lógica do roteiro turístico: o fluxo é orientado no sentido de permitir que o turista passe pelos pontos principais, otimizando o tempo empregado na visita e registrando sua passagem por ali (o registro é muito importante, as redes sociais que o digam). Entenda-se por pontos principais apenas aquilo que é ilustre. Seguimos os mapas afoitos, buscando salas, olhando o relógio, amargurados com a quantidade de escadas e corredores, esquecendo-nos de que muitas vezes estamos em palácios, edifícios históricos ou marcos da arquitetura. Estabanados, tropeçamos, nos trombamos, fazemos barulho e até furamos telas centenárias tentando salvar a nossa latinha de Coca-cola.
E neste ínterim, preenchendo as lacunas entre as peças do rol das tais “obras relevantes”, estão ali os objetos invisíveis, quase que abandonados à própria sorte. No mesmo museu do Prado, cito outro objeto invisível: Vista prospettica di un anfiteatro romano, pintada em 1638 por Viviano Codazzi e Domenico Gargiulo. O quadro de enormes dimensões, que como diz o título é uma vista panorâmica de um anfiteatro romano, está pendurado na frente de uma escada. Isso quer dizer que não está numa sala. Um menino de aproximadamente 10 anos, turista, acompanhado pelo pai passa pelo arco que dá acesso a esta área sem registro, este não-lugar dentro do museu. Ele olha para o quadro e imediatamente se desvencilha da mão do pai e vai com a mão esticada em direção ao anfiteatro romano. O pai chama. Da outra sala corre uma vigia para impedir que o menino toque o quadro de quase quatrocentos anos.
Ora, o garoto apenas respondeu adequadamente aos sinais à sua volta. Ele saiu de uma sala repleta de objetos providos de aura, os quais, como qualquer coisa sagrada, ele não pode tocar. Logo, ao entrar na não-sala do museu, me parece natural que ele interpretasse que o que está ali é outra classe de objeto, diante do qual ele poderia ter uma outra conduta, menos solene e submissa.
O que está em questão aqui não é, de maneira nenhuma, a segurança das obras de arte no museu, e sim a nossa capacidade de interpretação e reflexão sobre elas, de como nos relacionamos com a arte tanto individualmente como em seu conjunto dentro e fora dos museus. Trocando em miúdos, a questão que se apresenta mediante os acervos invisíveis é o que está acontecendo com a nossa capacidade, que como seres humanos deveria vir de fábrica, de simplesmente pensar.
Creio que é o momento de perguntar-nos com toda a sinceridade e seriedade, através de que olhos, senão os nossos próprios, queremos enxergar o mundo. Cada um de nós é um universo inteiro e temos todos os mecanismos necessários para estabelecer relações, analisar, raciocinar (lembra do documentário “Ilha das Flores”, do polegar o opositor e o tele-encéfalo altamente desenvolvido?). Ao invés disso nos comportamos diante da arte como um manso rebanho que compra verdades absolutas, se aborrece e exaspera diante do que há de mais excepcional na criação humana e ainda tem a ousadia de fingir que está sentindo prazer.
Quem tem pressa não consegue refletir. Muito menos sentir prazer.