Encontrei com o Louco do Tarot na rodoviária de Osório num final de tarde chuvoso e outonal. Dou aulas em Osório toda quarta-feira, de manhã e de tarde, e no final da tarde a gente deixa o nome com o rapaz do guichê das passagens e se tem lugar para Porto Alegre ele chama o nome das pessoas interessadas. Nunca sabemos se vamos de fato embarcar, mas sempre dá certo.
O que se sentimos diante de uma imagem arquetípica é sempre avassalador. Muitas vezes não sabemos exatamente do que se trata, mas sabemos da potência simbólica da experiência. Ela fala com a nossa alma. Uma vez num carnaval no Rio de Janeiro encontrei com uma adolescente grávida que tinha uma coroa de estrelas na cabeça, uma tiara de plástico, muito simples, era uma moça muito pobre. Mas o esplendor e a força que emanava daquela mulher que alisava serenamente a barriga me fizeram entender que eu estava na frente da Imperatriz. E que a sua beleza tinha a ver com uma vitalidade e prosperidade muito singular.
Sentei no banco da rodoviária esperando que chamassem o meu nome. Um homem jovem, moreno, com a roupa esfarrapada passou por trás do banco onde eu estava sentada. Ele levava uma trouxa vermelha amarrada num cano, tinha a barra das calças dobradas, uma boina basca preta e vestia umas alpargatas destruídas. Do lado dele um cão branco e atrás do cão, vários outros vira-latas. O homem deu um assovio que ecoou pela rodoviária e os outros cães fugiram. Ele desfilou solene pelo espaço e me olhou firmemente. “É o Louco do Tarot”, eu quis gritar pra todo mundo ouvir. E tentei imaginar o que ele estava tentando me dizer naquele entardecer sombrio.
Esta noite acordei de madrugada e pensei que o lema do louco poderia ser este: “Assim na terra como no céu”. E que corresponde um pouco ao significado da carta, o Louco olha as estrelas, com a fé inabalável dos doidos, ele crê no mapa errático e caótico do universo. Ele está à beira de um precipício e não tem nada além da roupa do corpo e uma parca mochila. Um cão branco ao seu lado, no entanto, o alerta e guia. O louco anda só e perdido. O louco precisa ousar, sabe que não há como se encontrar sem se perder. Ele é a força motriz, ígnea, selvagem, instintiva, primitiva.
Esta noite tive sonhos com animais selvagens que não sei o nome, animais furiosos, e acordei serena e imensamente alegre. Porque depois de alguns meses de mudanças de vida profundas, que me assustaram muito, hoje, nesta madrugada fria, a minha alma perdeu o medo. O medo de que as escolhas não tenham sido certas, o medo do que virá, o medo que me impedia de ver as linhas do mapa. Perdi o medo e acordei sorrindo ouvindo o canto dos pássaros na casa amarela. O mantra do Louco embalava o amanhecer: “Assim na Terra como no Céu”, e que invoca impressões definitivas, que algumas coisas que nos acontecem talvez já estivessem, misteriosamente, desenhadas e que nem sempre elas correspondem ao que pensávamos desejar. Que elas ainda podem ser outras, diferentes das que supúnhamos possíveis e que ainda assim podem ser maravilhosas e surpreendentes. E que não temos nenhuma espécie de controle sobre nada.
Cheguei a Porto Alegre e fui pegar o Catamarã para ir para casa. As ondas do Guaíba estavam agitadas. Olhei a minha imagem na janela do barco, misturada com a das águas e sigo sem saber quem é esta mulher que passa o batom, arruma o cabelo molhado da chuva e que leva pão preto para casa para jantar no fim do dia. Talvez o Louco tenha vindo me anunciar o fim do medo e a certeza da imprevisibilidade das rotas. Talvez aquele olhar e aquele assovio poderoso anunciem o que eu sempre soube: que quem se aventura às grandes mudanças pode, depois de tudo, voar.
Chego a Guaíba e já é noite e a chuva amainou. E vou para Eldorado do Sul, o lugar onde moro agora. Numa casa que está se transformando num lar. E onde pintamos a velha despensa com tinta cor de laranja. E onde ele me levou para o pátio, numa tarde de verão, para tirar a tinta dos meus cabelos, com um pente destes de catar piolho, tirou os pedaços de tinta, encostei a cabeça no corpo molhado dele e o sol ofuscou os nossos olhos, a cor laranja ficou dourada, os nossos olhos iluminados. Com ele lembrei-me do significado real de palavras esquecidas: alecrim selvagem, flor de hibisco, boi, garça, cágado, lagartixa, erva doce, eucalipto, tempestade. E que determinadas experiências são da ordem da fé e nada mais. Em Eldorado do Sul aprendi que nem tudo que reluz é ouro. E que para além do ouro encontrei apenas o que procurava com avidez: a vida vívida, a vida vivida, a vida viva.