O nosso beijo aconteceu antes dos meus lábios dançarem com os lábios de Elis naquela noite ventosa do mês de setembro. O nosso beijo aconteceu antes, bem antes.
Aconteceu com os nossos desejos disfarçados de olhares, com o choque quente do toque da nossa pele, com as palavras revestidas de outras intenções. O nosso beijo aconteceu antes. Aconteceu com os meus ouvidos tateando as paredes, procurando a voz dela. O nosso beijo já existia, silencioso, guardado nos cantos dos nossos olhares desviados, nos sorrisos que vinham com promessas que nenhuma de nós ousava verbalizar. Era um beijo feito de fragmentos: desejos disfarçados, o choque quente de dedos que se esbarravam e permaneciam um segundo a mais do que o necessário.
O nosso beijo aconteceu antes, quando a voz de Elis ecoou pela primeira vez e tomou forma dentro de mim, como uma música que não se esquece. Eu a ouvia, mesmo quando ela não falava, sentindo as palavras ressoarem como se fossem tatuadas no ar. Quando ela colocou aquele poema dobrado no bolso do meu casaco, as letras queimaram na minha pele, ainda que eu não soubesse o que diziam. Mais tarde, repassei as frases soltas pela madrugada: "Admitir o que somos para ser o que se é. Recusar o medo é encará-lo, não escondê-lo. Vem ser feliz comigo? Não quero viver em segredo."
Naquela noite ventosa do mês de setembro, a chuva caía, e nos abrigamos no mesmo guarda-chuva amarelo. A mão dela na minha cintura. “Chega mais perto pra não se molhar” - contradições. A respiração tão presente. A chuva. Sua mão na minha cintura era firme, mas hesitante, como se o simples toque fosse o bastante para desmoronar as barreiras que construímos ao nosso redor.
O sussurro dos olhos. A chuva. O medo. A vontade. O tesão de descobrir os mundos e todas as possibilidades. Doía a carne sustentar os nossos corpos distantes. Doía a garganta sustentar o nosso segredo. A chuva caía como uma bênção e uma provocação. Cada gota parecia trazer consigo a coragem que nos faltava, mas também o medo do que viria depois. O vento sussurrava segredos, empurrando nossos corpos para mais perto, e, mesmo assim, permanecíamos em um equilíbrio tenso. O espaço entre nós era uma linha tênue, carregada de possibilidades não ditas e de um desejo palpável.
Já era tarde demais para fingir que o beijo ainda não havia acontecido. Ele já existia em tudo o que éramos juntas: no poema que eu encontrei no meu bolso e decorei antes de dormir, nos olhares que se demoravam um pouco mais do que o aceitável, na forma como a presença dela ocupava cada canto do meu pensamento.
Sua mão na minha cintura era um ponto de ancoragem em meio ao caos de sentimentos que me invadiam. Eu sentia a textura do seu casaco contra o meu braço, o cheiro de chuva misturado com o perfume que ela usava. Cada detalhe parecia amplificado, como se o universo conspirasse para que aquele momento fosse impossível de esquecer.
“Não precisamos disso,” ela disse, de repente, largando o guarda-chuva no chão. A chuva caiu sobre nós, ensopando nossos cabelos e roupas, mas algo naquela vulnerabilidade parecia libertador.
O nosso beijo aconteceu. Um beijo urgente, como se o tempo fosse escapar de nós a qualquer momento. Foi suave e doce pela coragem que finalmente encontramos. Molhado. Molhadas.
Naquele momento, tudo parecia possível. A chuva não era mais um obstáculo, mas uma celebração, uma trilha sonora para o início de algo que nenhuma de nós sabia exatamente como nomear.
A chuva cura, me disseram uma vez. Éramos só eu e Elis e a chuva e a noite ventosa do mês de setembro e o guarda-chuva amarelo esquecido no chão.