Cem anos depois, olho para o Horóscopo de Orpheu e evoco palavras de Pessoa:
“O horóscopo revela, pouco mais ou menos, o que a vida vê […] não relata o que há antes do nascimento, nem o que há depois da morte […]. A vida é essencialmente acção, e o que o horóscopo indica é a acção que há na vida do nativo”.
Indica, de facto, indica a existência de uma revista que mudou o rumo da arte em Portugal. Não que essa mudança tenha sido abrupta e com data marcada – há muito que se vinha anunciando no movimento da Renascença Portuguesa – mas houve um momento que a firmou: “26 de Março às 7 p. m. 1.º número vendido”. Assim, de forma peca e seca.
O Orpheu, cujo centenário celebramos, não foi um projecto propriamente geracional como comummente se diz, outrossim o génio de Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e Almada Negreiros tendo este prolongado os desígnios da revista no tempo. Foi, acima de tudo “uma das duas coisas interessantes em Portugal – a paisagem e o Orpheu. Tudo quanto está de permeio é palha podre usada”.
Os dois números publicados – prefiro deixar o terceiro (póstumo) para uma discussão mais longa – são a prova inequívoca não de uma necessidade de ruptura, que a não houve apesar de resolutamente anunciada pela tríade acima referida, mas de uma necessidade de mudança. Necessidade de “criar uma arte cosmopolita no tempo e no espaço”. Necessidade ainda de afirmar que os países “pela primeira vez intelectualmente, existem todos dentro de cada um, em que a Ásia, a América, a África e a Oceânia são a Europa e existem todos na Europa”. A grande novidade de Orpheu reside, justamente, na desnacionalização da arte, no desejo que esta acumule “dentro de si todas as partes do mundo”. Estão lançadas as raízes para a “arte-todas-as-artes” e, sibilinamente, mais ou menos inconscientemente, Fernando Pessoa e os seus cúmplices, perspectivando o inquestionável binómio Arte / Sociedade, antecipam a ideia de aldeia global que é hoje a nossa realidade. Não que os outros continentes existam nesta Europa mais ou menos decadente que teima em não abandonar o seu jeito de prima dona, mas que todos eles se conluiem, quer material quer intelectualmente, para o progresso da humanidade.
Que os dois números de Orpheu foram suficientes para que esta mudança se operasse? Nem pensar. “Orpheu acabou. Orpheu continua”. Estes dois números foram tão só a génese da arte moderna “onde a dolência e o misticismo asiático, o primitivismo africano, o cosmopolitismo das Américas, o exotismo ultra da Oceânia e o maquinismo decadente da Europa se fundam, se cruzem, se interseccionem”.
“Orpheu acabou. Orpheu continua”. Continua nas obras de Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros e, porque não?, Ângelo de Lima, Raul Leal, Ronald de Carvalho, Côrtes-Rodrigues, Alfredo Pedro Guisado, Santa-Rita Pintor, Luís de Montalvor e tantos outros que, embora me recuse a imbuí-los de um espírito geracional, absorveram e cultivaram os desígnios da revista.
“Orpheu acabou. Orpheu continua”. Continua vivo interpretado e explicado não só, mas também, pelas revistas literárias que se lhe seguiram. Algumas houve que, sendo embora um retrocesso em relação às inovações órficas – Centauro, Exílio – não prescindiram da colaboração de Luís Montalvor, Fernando Pessoa ou Cortes-Rodrigues, numa total abertura aos “engraçadinhos” de Orpheu. Outras – Portugal Futurista, Contemporânea e Athena (dirigida pelo próprio Fernando Pessoa e Ruy Vaz) – continuaram de forma diversificada o legado de Orpheu defendendo o modernismo e considerando a cultura “o aperfeiçoamento subjectivo da vida”.
Uma referência especial é devida à revista Presença (1927-1940) por ter sido aquela que, verdadeiramente, ensinou a ler a produção dos órficos. De facto, os presencistas, encontrando afinidades com os órficos, apoderaram-se da sua herança para a prolongar e explicar. Apesar de todas as enormes diferenças conceptuais manifestas entre as duas revistas, o Orpheu ficou a dever à presença uma espécie de reabilitação e, muito particularmente, a divulgação dos seus mestres maiores em artigos como “Da geração modernista” e “Ainda uma interpretação do modernismo” assinados por José Régio, “Modernismo” da autoria de João Gaspar Simões ou “Mário de Sá-Carneiro” de Adolfo Casais Monteiro. Não se quedando pelos textos teóricos, os presencistas divulgaram tábuas bibliográficas e produção poética e em prosa dos órficos, algo marginalizados por o serem, sem que isso constituísse menosprezo para os nomes já consagrados no âmbito da literatura portuguesa.
Depois…, Orpheu continua enquanto “soma e síntese de todos os movimentos literários modernos”, como afirmou Álvaro de Campos; continua como balão de ensaio da pós-modernidade; 100 anos depois continua porque “Os portugueses estão sempre fazendo revoluções”. O Horóscopo do Orpheu é por demais demonstrativo da sua acção “à prova de Portugal”.
Nota: As expressões entre aspas são de Fernando Pessoa – Obra em Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1976.