Além das inovações hermenêuticas em termos de dialéctica, relativamente à teoria da interpretação, a saber: apropriação/distanciação; Ricoeur constitui uma referência fundamental no que concerne a hermenêutica de texto. Ricoeur é um filósofo que se preocupa com a educação e com os valores, sublinhe-se que no seu artigo sobre ética e moral, o filósofo retoma a questão do carácter misto da noção de valor, avaliando-o como uma noção de compromisso entre o desejo de liberdade das consciências singulares, no seu movimento de reconhecimento mútuo, e as situações já éticamente qualificadas; então para o filósofo, a educação consitirá, em grande parte, em inscrever o projecto de liberdade de cada um nesta história comum dos valores.
Ricoeur foi mesmo pioneiro, quando decidiu estabelecer uma distinção entre ética e moral. Enquanto a ética terá como tarefa o fazer surgir a liberdade do outro como semelhante à minha, porque o “outro” é meu semelhante, seja na alteridade ou na similitude ; trata-se de fazer um reconhecimento, quer de um projecto de liberdade individual, quer de uma história de valores, que é comum a todos; já o que nos conduz do valor ao imperativo e à lei, isto é, à gramática do comando e da consciência moral, diz respeito à norma, à vontade normativa que comanda uma vontade arbitrária e “eu” encontro-me de mim para mim mesmo numa relação de comando e obediência, pois dentro de mim, uma voz dirige-se ao meu “eu”. Talvez por isso o filósofo tenha feito uma distinção entre ética e moral.
Embora reconhecendo que, etimologicamente, os dois vocábulos, um de origem grega e outro de origem latina, têm o mesmo significado, pois ambos nos remetem para os costumes e, historicamente referem-se quer ao que é julgado bom, quer ao que se impõe como obrigatório, Ricoeur propõe que o termo ética seja reservado apenas para a intenção de uma “vida boa”, de uma vida perfeitamente realizada, e o termo moral para a articulação daquela intenção com normas constritivas. Esta distinção é referida num artigo de Jean-Michel Bauduin (1994), intitulado La trajectoire réfléxive contemporaine. Segundo este autor, Ricoeur, apesar de ter herdado de Aristóteles (o bom) e de Kant (o obrigatório), a sua trajectória reflexiva vai do primado da ética à obrigação moral para depois voltar à ética, ganhando neste percurso uma sageza prática cuja essência muito deve a Aristóteles e à sua obra Ética a Nicomaco.
Também Francis Imbert, in La question de l’Éthique (1993) reflecte sobre este assunto e releva a importância de Ricoeur a este propósito, num artigo do filósofo, intitulado “Avant la loi morale: l’éthique” :“Il y a éthique parce que par acte grave de position de liberté, je m’arrache au cours des choses, à la nature et à ses lois, à la vie même et à ses besoins”. É com a ética e através da ética que se problematiza o sujeito, o seu discurso e os seus desejos únicos. A ética devolve ao sujeito a sua singularidade: “La distinction éthique/morale nous conduit à une nouvelle distinction qui constitue sa base, son fondement, il s’agit de la distinction de la régle (la loi code, la loi institutionelle) et la loi symbolique” (ibidem). Assim sendo, e uma vez institucionalizada a moral, o compromisso ético é entendido como praxis, isto é, o acto através do qual o sujeito não somente exerce e desenvolve as suas capacidades mas ainda não cessa de se autocriar, de existir através de uma autotransformação; pois conhecer o poder que temos, descobrir as possíveis consequências das nossas acções, é parte integrante da moral.
“La morale définit les Bonnes Formes de la conduite, l’éthique interroge le sujet pris dans cette morale…” a nosso ver há que encarar a ética ricoeuriana como a hermenêutica da própria moral, “L’éthique ouvre un champs de création, un champs oú chacun se trouve confronté à la tâche de son incessante auto-création… La dimension éthique permet,donc, un au-delá metapedagogique de la pédagogie qui contribue à lui donner un sens”.
Essa função metapedagógica da componente ética, vai proporcionar meta-realidades para os alunos (sujeito e objecto de transformação do discurso). É com a ética e através dela que a questão do sujeito toma forma; a existência do seu discurso e do seu desejo singulares. Deste modo, e através de uma hermenêutica da moral que a própria literatura possibilita, a narrativa torna-se o campo privilegiado para o encontro de sujeitos; de leitores de mundos iguais e diferentes entre si.
É em Temps et Récit que Ricoeur nos dá conta de que o mundo do leitor se oferece a uma redescrição, a qual é antes de mais uma releitura do mundo de si próprio. Há toda uma refiguração, toda uma reorganização do nosso estar-no-mundo, conduzida pelo leitor, ele próprio convidado pelo texto a tornar-se leitor dele mesmo (citando as palavras de Proust, 1963). É o caminho de Sócrates, o da busca da identidade.
Mas será que podemos escolher o Bem ou o Mal? A liberdade é um terreno onde, segundo Ricoeur, aparece claramente a dimensão ética do mal, identificando-se em parte com o que habitualmente se considera como “consciência moral”.
Para Ricoeur, o mal é um problema ético. É-o, em primeiro lugar, porque não pode existir o mal-ser, o mal-substância, ao contrário do que afirmava o maniqueísmo. O que existe é o mal fazer, o mal como obra do homem, que resulta do mau uso da sua liberdade. Liberdade e mal estão intimamente ligados. Mas, se a liberdade qualifica o mal como um “fazer”, o mal é um revelador e uma ocasião soberana para se tomar consciência da liberdade. Afirmar-me com origem do mal é assumir as consequências dos meus actos. O significado ético do mal não se esgota na sua relação com a liberdade e com a obrigação moral; lembremo-nos do mito de Adão e Eva, a ligação de todos os pecados a uma só raiz anterior a cada uma das expressões particulares do mal e que afecta todos os homens. O mito narra a declaração de uma culpabilidade fundamental que atinge todos os homens e que resulta de um evento que, tendo-se dado uma vez única (simbólica), introduziu para sempre o mal no mundo, fazendo passar o homem do estado de inocência para o de pecado. Então, diríamos que esse mal é um mal necessário, pois ele é o próprio caminho da Humanidade, o desvio do paraíso e o caminho da descoberta, do conhecimento, do livre-arbítrio. Logo, “o mal do mal” serão as falsas sínteses prematuras, os dogmas, as totalizações e as interpretações finitas; neste sentido a hermenêutica pode ser uma porta de salvação, na medida em que a interiorização e compreensão das coisas conduz a uma maior consciência das mesmas.
Thomasset, na sua obra: Paul Ricoeur, une poétique de la morale (1996: 53-83), defende que “Dans l’analyse éthique que nous voulons tenter de l’oeuvre de Ricoeur, il est essentiel d’entendre que l’action humaine est l’axe de sa recherche”. É uma ontologia e uma antropologia do agir que, de facto, dominam as suas pesquisas. “Pour Ricoeur, l’interpretation des textes et des signes est le chemin d’accés et l’explication de se comprendre ontologique deposé dans le langage”. “Pour Ricoeur, l’éthique est cette “odyssée” de la liberté à travers le monde des oeuvres, ce voyage de la croyance aveugle du “je veux” à l’histoire réelle du “je fais”. É por isso que o formalismo kantiano, que se constitui, criando uma conexão directa entre a lei moral e a liberdade, dissimula, segundo Ricoeur, a estrutura fundamental do agir. Para Ricoeur, o fundamental é ter em conta uma dialéctica do agir – o desejo de ser num desejo de fazer, transformador, operativo. É que, contrariamente ao conceito clássico de mimesis, que acentuava a “imitação”, a mimesis em Ricoeur é sinónimo de reconstrução e transformação: “C’est la tâche de l’hermeneutique (de la fonction narrative) de reconstruire l’ensemble des opérations par lesquelles une oeuvre s’enléve sur le fond opaque du vivre, de l’agir et du souffrir, pour être donné par un auteur à un lecteur qui la reçoit et ainsi change son agir” (Ricoeur, 1983). Este caracter transformador da mimesis tem consideráveis consequências no plano ético, como refere Ricoeur: “Le récit raconte aussi le souci”. A narrativa, como o afirmou o filósofo, é “le premier laboratoire du jujement morale”, ao alimentar o tesouro do nosso imaginário individual, intersubjectivo e social, a narrativa inspira a nossa perspectiva ética (Ricoeur,1990).
Por isso há que questionar: não será a ética uma hermenêutica da própria moral?
Nesta sua obra Si-mesmo como um outro, nas páginas que abordam “o Si e a perspectiva ética”, Ricoeur sublinha o facto de se fazer da narração uma transição natural entre descrição e prescrição, já que, as acções complexas, representadas por ficções narrativas ricas em antecipações de caracter ético, podem desenvolver um espaço imaginário para experiências de pensamento em que o julgamento moral se exerce de modo hipotético. O filósofo propõe uma distinção entre ética e moral, reservando o termo ética para a perspectiva de uma vida realizada e “moral” para a articulação dessa perspectiva em normas caracterizadas pela pretensão à universalidade. Na distinção entre perspectiva e norma revisitamos a oposição entre uma herança Aristotélica, em que a ética se caracteriza pela sua perspectiva teleológica, e uma herança kantiana, em que a moral é definida pelo carácter de obrigação da norma, logo, por um ponto de vista deontológico. Há, pois, que estabelecer entre as duas heranças, uma relação ao mesmo tempo de subordinação e de complementaridade, reforçada pelo recurso final da moral à ética. Ricoeur faz ainda articular a perspectiva teleológica com o momento deontológico ao identificar a perspectiva ética – a estima de si – com o momento deontológico – o respeito de si – sendo que a estima de si pode surgir, não só como origem mas como recurso do respeito; estabelecendo-se, assim, o primado da ética sobre a moral.
Toda a ética pressupõe, segundo o filósofo, e como já referimos, o uso do predicado “bom” – “vida boa”, e nesse sentido, a primeira grande lição que podemos guardar de Aristóteles é ter procurado na praxis a ancoragem fundamental da perspectiva da “vida boa” (como aliás referem as primeiras linhas de Ética a Nicomaco I). A segunda, é de ter tentado constituir a teleologia interna à praxis, como princípio estruturante de “uma vida boa”.