Em 1993, Antuérpia foi a capital europeia da cultura e escolheu, como mote, uma questão: “pode a arte salvar o mundo?” Não foi encontrada nenhuma resposta satisfatória, se é que há alguma. Mas este mote fez com que o ano de Antuérpia como centro das atenções culturais do mundo europeu fosse bastante produtivo e instigante. Uma cidade com grande tradição no comércio, com um dos maiores portos da Europa, decidiu abrir-se efectivamente às artes, permitindo o desenvolvimento de diversos espectáculos e mostras, dando aos criadores um grande espaço para desenvolver projectos ousados, sem impor um limite economicista para a criação artística. Se este projecto não salvou o mundo, deu alento ao mundo das artes, cujas produções ali realizadas aportaram em outras paragens nos anos que se seguiram.
O conceito de capital da cultura surge ainda nos anos 80 pelas mãos da então ministra grega Melina Mercouri. O Relatório Palmer, de 2004, faz uma extensa avaliação sobre as capitais da cultura, de 1995 a 2004, onde não só descreve os casos estudados como apresenta uma série[1] de recomendações. A ideia do relatório era estudar o impacto económico e cultural, bem como o possível impacto social resultante da escolha de determinada cidade assumir, por um ano, o papel de centro cultural da Europa. Mesmo que a finalidade do relatório seja a de orientar os organizadores das futuras capitais da cultura, é um documento bastante interessante para que se analise a pertinência económica, cultural e social de um evento como este. Uma das conclusões do relatório é a de que se não houver um entrelaçamento entre os objectivos sociais, culturais e económicos, e não houver qualquer mudança das políticas, públicas ou privadas, no que diz respeito ao investimento no sector cultural, o que fica, além das boas lembranças, são apenas dívidas[2].
A relação entre as artes e a economia sempre foi bastante polémica. De um modo geral, os artistas negavam-se a admitir que as suas obras pudessem ser encaradas como um produto mais entre tantos outros que a cultura industrial produzia em massa. Nos anos 40, do séc. XX, os teóricos da Escola de Frankfurt criaram um termo para designar a nova forma de produção de bens culturais: Indústria Cultural[3]. Horkheimer e Adorno procuravam definir o novo papel da arte numa era de produção massiva orientada pelo capitalismo vigente. A produção artística saía da esfera dos bens de consumo espiritual para os bens de consumo primário, já que a sua produção e distribuição em nada diferia da produção e distribuição dos bens de consumo convencionais. A cultura de massa aparecia para substituir outras formas possíveis de cultura e, para estes filósofos, a única forma de resistir à massificação completa do pensamento artístico era viver nas margens, como faziam os artistas de vanguarda. As vanguardas artísticas apareciam como uma forma de resistência necessária, sem a qual a arte sucumbiria à barbárie.
A relação entre a cultura e o capitalismo fomentou, desde sempre, a reflexão intelectual dos membros da Escola de Frankfurt que não viam com bons olhos o processo de produção da cultura na primeira metade do séc. XX. A cultura passou a ser dividida em alta e baixa cultura. Na segunda categoria apareceria todo e qualquer produto que pertencesse à cultura de massas: filmes, programas radiofónicos, publicidade, música e literatura ligeiras. A condição de reprodutibilidade das novas tecnologias era encarada como um factor de empobrecimento da criação artística, tema caro ao filósofo Walter Benjamin.
Para os sociólogos e filósofos da Escola de Frankfurt o problema da cultura de massa residia no facto de ser construída sobre uma ideologia fraudulenta. Adorno, Horkheimer e Marcuse, em diversas obras, elaboram o conceito de cultura a partir da distinção feita na Alemanha entre cultura e civilização. A cultura era o lugar dos sentimentos elevados onde conceitos como liberdade e felicidade poderiam ser postulados. À civilização caberia o papel de reprodutora de bens materiais. A ideologia burguesa do fim do século XIX difundia a cultura, como uma promessa de futuro, para que a população em geral não questionasse o sistema de produção, e distribuição, de bens materiais. As novas tecnologias permitiriam que mais pessoas desfrutassem dos bens culturais, através do seu processo de reprodução e difusão, aproximando todos do mundo idílico da cultura. O que seria, a partida, um bom negócio para todos. O problema, segundo Benjamin, é que a dissolução da cultura na civilização, ou seja, a conversão de bens simbólicos em bens materiais, não trouxe o prometido paraíso partilhado mas, pelo contrário, converteu a cultura em mercadoria, integrando-a completamente no sistema de valores capitalistas.
A cultura transformada em valor de troca perde as suas qualidades intrínsecas e reforça, ainda mais, o fosso entre a elite e o povo. Pode-se dizer que alguns conceitos da Escola de Frankfurt são datados ou muito marcados pela circunstância em que nasceram, mas não nos devemos esquecer de que a promessa de fusão entre civilização e cultura, de facto, não se concretizou. Os bens de cultura continuam a ser bens de consumo, com valor de troca, e aqueles que escapam a este destino são pertença de uma elite intelectual e/ou económica e estão cada vez mais distantes de uma circulação e consumos verdadeiramente democráticos.
Nem todos os intelectuais de meados do séc. XX viram a questão da relação entre a cultura, e nesta esfera a arte, e a nova realidade de distribuição e consumo da mesma de foram negativa. O filósofo francês Étienne Souriau promoveu uma reflexão muito interessante sobre o papel das artes[4] na sociedade de consumo. Na sua obra ele analisa o PIB francês e destaca a importância das artes neste contexto. Chega a conclusão de que uma significativa fasquia dos dividendos em França provinham do consumo de arte, em forma de compras de obras, de antiguidades, da frequência regular a espaços como teatros, cinemas, salas de concertos, bem como a aquisição de livros de arte e idas a museus.
Para Souriau, a arte não é sonho, é o contrário do sonho, porque é um gesto criador que implica uma acção. No campo da Estética a sua posição é bastante provocadora e, ao mesmo tempo, avança em algumas décadas a reflexão sobre o papel das artes na economia de um país. Nos anos 80, no Reino Unido, o Greater London Council começou a utilizar o termo Indústria Cultural para falar de actividades culturais que geravam riquezas e empregos e que não estavam integradas no sistema de financiamento público. O termo aqui não assume o aspecto negativo que lhe foi dado à nascença, mas serve para ilustrar a ligação entre arte e economia, sendo a primeira, como já havia dito Souriau, uma importante fonte de riqueza e trabalho. Nos anos 90, na Austrália, aparece o termo Indústrias Criativas, que incorporava áreas de produção que envolvessem a criatividade, competência e o talento individual, como potenciais geradores de trabalho e riqueza, sobretudo através da exploração da propriedade intelectual[5].
O conceito, no caso da Inglaterra, encontrou terreno fértil para desenvolver-se e não ficou submetido ao sabor de políticas culturais efémeras, mas esteve na base da criação de novas políticas e de uma postura diferente, dentro do Estado, em relação à produção artística e cultural:
O caso inglês é comumente usado como referência, devido ao seu pioneirismo e à associação do tema com uma agenda política e econômica. A Inglaterra realizou um mapeamento detalhado das atividades criativas no país (DCMS, 2005) e conta com um Ministério das Indústrias Criativas[6].
Percebeu-se que as artes e a cultura não eram actividades marginais, mas que, pelo contrário, estavam plenamente inseridas na lógica de produção e geravam riqueza e trabalho, bens essenciais para qualquer nação.
Fala-se hoje de sociedades pós-indústriais, e mais ainda, de sociedades pós-materialistas. Não podemos deixar para trás um pensamento fundamental para alguns filósofos de Frankfurt: a ideia da diluição da cultura na civilização, que deveria ser um benefício, mas que foi desviada do seu fim reificando o universo à sua volta. A tão falada Sociedade do Conhecimento que reflectiria a mudança de paradigma económico e social, é uma realidade. Mas não é uma realidade (com)partilhada. A sua existência está vinculada a uma série de princípios de produção e circulação de bens que está longe de ser uniforme na nossa sociedade global. Talvez o nome tenha sido alterado, mas a ideologia permanece: os bens culturais são uma promessa de paraíso possível. Só que este paraíso está, definitivamente, vetado a muitas pessoas.
Os teóricos, como Castells, Florida ou Inglehart, que reflectiram e reflectem sobre o conceito de indústria criativa, têm como assente que estas indústrias se instalam naturalmente em sociedades onde “o capital tem base intelectual, fundamentando-se no indivíduo, em seus recursos intelectuais, na capacidade de formação de redes sociais e na troca de conhecimentos”[7] o que, convenhamos, não é a realidade de muitos países, entre eles, Portugal. A ideia é fascinante: fomentar a criação de indústrias cuja produção seja baseada na criatividade e no talento. A verdade é que o grosso da produção das indústrias chamadas criativas está voltado para as telecomunicações e novas tecnologias o que inviabiliza, a partida, a distribuição democrática das mesmas num país centralista como o que temos.
A arte não pode salvar o mundo. Mas deveria continuar a tentar. Não sou tão frankfurtiana ao ponto de pensar que os bens da cultura de massa são todos representantes da baixa cultura. Tampouco defendo que a reprodutibilidade mata, a partida, a artisticidade da obra, ou que o cinema, arte reprodutível por excelência, não possa ser considerado Arte. No entanto defendo que devemos olhar para aquilo que já foi feito, e pensado, e pararmos um pouco para reflectir. Até que ponto as indústrias criativas podem dar respostas a economias fragilizadas que, em muitos casos, nem sequer passaram pela fase de industrialização? Até que ponto o discurso construído à volta do tema não passa de retórica, bem elaborada, incitando mudanças de paradigmas e ruptura quando no fundo, o que defendem, é apenas a primazia da civilização sobre a cultura? As artes poderão salvar o mundo se servirem para fomentar uma discussão mais vasta e profunda sobre a criatividade, a criação e o conhecimento. E para isto, precisa de readquirir a sua independência. O problema é saber se os artistas estão dispostos, hoje em dia, a frequentar o lugar que outrora foi dos seus antepassados: as margens. E, de uma maneira criativa, trazer as margens para o centro.
Notas
[1] http://ec.europa.eu/culture/key-documents/doc926_en.htm
[2] No dia 1 de Abril de 2010, António Pinto Ribeiro escreveu um artigo no Jornal O Público onde faz uma reflexão bastante pertinente sobre esta questão. O artigo pode ser consultado em: http://www.antoniopintoribeiro.com/cms/?capitais-europeias-da-cultura-que-fazer-com-elas-,68
[3] Termo criado pelos filósofos e sociólogos Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973). O termo aparece no capítulo Kulturindustrie - Aufklärung als Massenbetrug na obra Dialektik der Aufklärung de 1947. Em 1941, Horkheimer utiliza o termo pela primeira vez num ensaio sobre a arte e a cultura de massa.
[4] Obras de Souriau onde ele discute o papel das artes e da Estética no séc. XX: L'Avenir de l'esthétique: essai sur l'objet d'une science naissante, F. Alcan, Coll. «Biblio. de Philosophie Contemporaine », 1929 e Clefs pour l'esthétique, 1970
[5] Algumas definições de Indústrias Criativas podem ser encontradas em:
Caves, R. Creative Industries. Harvard: Harvard University Press, 2000; DCMS (Department for Culture, Media and Sport). Creative industries mapping document.
Hartley, J. Creative Industries. London: Blackwell, 2005
Jaguaribe, A. Indústrias criativas.
Blythe, M. The work of art in the age of digital reproduction: the significance of the creative industries
Jade, v. 20, n. 2, p. 144-150, 2001
Conrford, J; Charles, D. Culture Cluster Mapping and Analysis: A Draft Report for ONE North East. Centre for Urban and Regional Development Studies, University of Newcastle upon Tyne, UK, 2001.
[6] Bendassolli, Pedro F; WOOD JR., Thomaz; KIRSCHBAUM, Charles e CUNHA, Miguel Pina e. Indústrias criativas: definição, limites e possibilidades. Rev. adm. empres. [online]. 2009, vol.49, n.1, pp. 10-18. ISSN 0034-7590
[7] Idem