“ Para qualquer ser humano a simples percepção de outro ser humano é já de si particularmente estimulante, mas na sociedade em que vivemos, onde, como nota Maffesoli ( 1190: 128-129), “ o signo conta mais mais que o significado”, cultiva-se a teatralidade dos corpos: cada homem, cada mulher, apresenta-se perante os outros como um “ corpo que se pavoneia” e finalmente a vida social é toda ela um espectáculo. É claro que isto acontece porque, como diz Breton, o ser humano tornou-se “ essencialmente olhar”.
In o corpo que somos, de Agostinho Ribeiro
Em Paula Rego as histórias vão emergindo à medida que a obra avança, como se fossem histórias contadas no presente do indicativo. A sua obra, como refere Ruth Rosengarten (2005) corporiza o impulso narrativo que informa o modo como vivemos as nossas vidas: o modo como se entrelaçam os sonhos, desejos e passados que constituem as histórias que contamos a nós próprios; mutatis mutandis, vamos ao encontro de Lewis Carroll que através da sua obra faz redescobrir e depois interpretar os conteúdos menmónicos do inconsciente do sujeito Alice. Quer em Carroll, quer em Paula Rego o corpo encontra-se enredado em sistemas de significação psíquica: o corpo é ao mesmo tempo um gerador de significados e um local (espaço tópico, de transformação) onde o significado se consuma em acto, seja de poder, de luta, de ilusão…
Nas obras de Paula Rego encontramos um sujeito que habita a cultura e compete com o conteúdo da sua lei e nessas obras a relação do sujeito com a autoridade transforma-se numa complexa mistura e interdependência entre obediência e resistência. Também em Carroll encontramos esta paisagem de alma relativamente a Alice e ambos vão assim construindo narrativas emancipadoras, imprimindo às personagens auto-determinação. Note-se que aspectos do comportamento e expressividade humana como crueldade, ternura, traição, amor e raiva, a capacidade de entreajuda e o exercício do poder emergem, quer num quer noutro, repetidamente sob roupagens várias, desde a metafórica (o Anjo de Paula Rego e a Rainha de Copas de Carroll) à antropormófica.
Quer Carroll, quer Rego constroem uma espécie de duplos de si mesmo e apresentam metáforas de estados emocionais. A artista pinta crianças que lutam contra os pais para alcançarem uma identidade própria (ex: Branca de neve a brincar com o troféu do pai); com Alice temos o regresso de si mesma como Outra, que não vai recitar as rimas que a mãe lhe impôs mas as que ela quer e do modo que deseja. Ao pintar, Paula Rego procura histórias e as histórias como afirma Rosengarten “ trazem sempre com elas novas maneiras de fazer” (Rosengarten: 1997). Todavia estas histórias, tal como as histórias de Carroll possibilitam o trabalhar de conteúdos psíquicos; Paula através de uma linguagem pictórica que dá corpo a esses estados interiores; Carroll fazendo da linguagem material plástico da literatura.
Se por um lado o trabalho de Paula Rego tem que ver com a metamorfose; a própria artista diz: “ Os meus quadros estão sempre a mudar”; por outro lado, o discurso literário de Carroll é uma metamorfose transformativa, em que as palavras se tornam sujeito e objecto de sentido e significação. Ainda outro ponto em comum aos dois artistas é que ambos são seduzidos pelo quotidiano, pela sabedoria prática ( ricoeuriana) do dia-a-dia pois temos Alice a transformar a hora do chá e as personagens que frequentavam a sua casa em companheiros de aventuras num país de sonho e temos Paula Rego a pintar As Criadas ; A Família ou ainda A Dança. Também o disforme e o animal são tópicos de ambos os autores e revelam uma consciência do mundo psíquico para além das fronteiras do consciente.
A propósito de As Meninas de Paula Rego, diz-nos Agustina Bessa- Luís no seu livro com o mesmo nome, que “ O mundo artista é um prolongamento da infância, dos seus medos e dos seus gritos penetrantes como o que os pavões soltam num parque deserto…”. Podemos dizer que Meninas de todas as idades e feitios mostram-se na obra de Paula Rego e Alice é uma delas. A artista escreve nas suas telas o Coelho de Alice numa Guerra, pronúncia as Rimas de Alice com a boca de As Meninas, a sua caligrafia penetra nos sonhos como em O sonho de José, relembrando a sua riqueza psicológica que faz com que Alice regresse a si mesma enquanto Outra. Ela descreve vidas interiores como Carroll ao desnudar o habitat das suas personagens. Agustina afirma que Paula Rego pinta “ para dar uma linguagem a tudo o que não tem palavras” ( Bessa-Luís, 2008) Nós diríamos que Carroll escreve para nos dar metarealidades, que são metamorfoses. Essas são os grandes acontecimentos em Paula Rego e Carroll. Na obra No Jardim de 1986, Paula Rego exprime a intercessão manifestada no lindo Jardim de Alice, entre o humano e o animal, este último que fala e protege; uma história primordial que nos conduz às fábulas e ao “ Era uma vez o tempo em que os animais falavam…” que nos remete para uma valência fantástica da linguagem e da sua gramática da fantasia: o poder de tudo fazer! O poder de tudo criar! E a arte como nos relembra Agustina “ é um jogo de linguagem” ( Bessa-Luís, 2008); a vida é uma adivinha que se propõe aos sentidos e por isso tudo o que escrevemos e pintamos são adivinhas.
Ao cruzarmos Lewis Carroll com Paula Rego, encontramos um conjunto de figuras, piruetas, situações de pernas para o ar…que nos fazem lembrar a metáfora da condição humana: O circo. Os símbolos balançam-se no trapézio das palavras e imagens desfazem a tabuada do tempo com um Chapeleiro maluco, mas as diversas Alices que encontramos, verdadeiras e falsas (temática aprofundada em Tim Burton) lá se vão equilibrando tendo por rede o sonho e as suas almofadas feitas de fios de linguagem estremecidos pelo sopro das personagens, ora animais ora humanos que se domesticam ou se libertam conforme o aplauso do nosso olhar.