Ela chega através dos sons, da música que faz vibrar o externo e que anima o coração. Ela chega pelo tambor, o assovio, o chamado, o grito. Ela vem com a palavra escrita e falada. Ela chega com o canto, com a dança, fazendo com que nos lembremos pelo menos por um instante, da substância da qual somos feitas e do lugar que é nosso verdadeiro lar.

Um chamado para penetrar nas nossas próprias histórias, pela porta da escuta interna, acessar aquela que sabe e transmitir seus impulsos à alma inibida, recolhendo e conservando em nós mulheres, aquilo que corre o risco de se perder. Aquilo que é próprio da alma feminina, que está escondido na natureza selvagem da mulher. Cantemos para recolher nossos restos psíquicos, e trazer de volta a vitalidade do ser, com a força do nosso canto. Dancemos para espalhar encantos. Memórias arquivadas das nossas tradições femininas, onde nossas mentes e instintos se misturam, e nossos corações e sentidos viram canções de cenas e sons.

Que chamado é este? Da consciência que está nos nossos ossos, que vivas ou mortas, permaneceremos na terra, com corpo ou sem corpo, somos as guardiãs da criação e continuaremos a ser, expressão da polaridade feminina de força instintiva, da mulher anciã, sábia, selvagem, senhora e guardiã dos nossos instintos criativos vitais e que está correndo risco de extinção. Há séculos e séculos estamos sendo silenciadas, esmagadas, violentadas, abusadas, mortas, assim como as faunas e floras das florestas virgens. Não podemos mais virar as costas para nossas terras internas, estas da natureza selvagem feminina, entregues há milênios a fio, às forças destrutivas desse sistema capital chamado patriarcado.

Por esta força feminina, compreendemos um movimento interiorizado, de recolhimento, dentro dos nosso ossos, do nosso ser instintivo, que nos conduzirá a profundidade escavatória dos nossos mundos subterrâneos femininos, em busca da nossa vitalidade esvaída em ritmos impostos e artificiais, e recuperarmos enfim, os recursos da natureza mais profunda da mulher, velha sabedoria que há muito não se manifesta. Dotada contudo, de resistência, força e coragem, é experiente e adaptável às constantes e adversas circunstâncias em mutação, junto a natureza selvagem, reunimos nossos ossos, remontamos o esqueleto, e das nossas profundezas, escolhemos a canção que iremos cantar.

Atenção Mulheres selvagens aprisionadas fora e dentro de nós, só poderá haver cura planetária, se conseguirmos libertá-las de uma vez por todas, da prisão deste sistema patriarcal cheio de crueldade, violência e pouca fé.

Ao procurá-la incessantemente, durante o inverno sombrio da alma, quando na escuridão do caminho, damos conta de que somos maltratadas, inibidas, oprimidas, violentadas e silenciadas pelo masculino adoecido, então é chegado esse momento, de saltarmos corajosamente floresta adentro, tanto provida da beleza da vida, quanto da tristeza da perda, e seguirmos fugazes, ainda que entristecidas ou alegres, desoladas ou ansiosas, seguirmos em busca da nossa natureza selvagem, mergulhadas em infindas histórias daquelas que sabem e já se foram, lutamos com ossos, dentes e garras, para mantê-las em ação permanentemente, sem pressa e sem pausa, na sua sabedoria oracular, na sua inspiração criadora, pois delas, do movimento conferido pelas histórias, dependerá a nossa vida criativa, dentro e fora de nós.

Será necessário esforço na subida dessa Montanha, agora conscientes da trilha, vamos respirando ritmicamente, atentas, latentes ao ambiente, aos sons, cenas e batidas do coração. A medida que vamos subindo, vamos permitindo que nossas almas cresçam, e quando chegamos ao topo, podemos perceber sua profundidade natural. Nossa natureza selvagem não nos exige ter cor, instrução determinada, maneiras de viver, classe econômica. Na real, ela não viceja em qualquer atmosfera imposta, repleta de velhos paradigmas. Isto lhes é antinatural, contra natureza, contra cultura.

O termo selvagem neste contexto não é usado em seu sentido pejorativo de algo fora de controle, mas em seu sentido original de viver uma vida natural, uma vida em que a criatura tenha uma integridade inata e limites saudáveis.

Lá do alto, o encontro da visão. A Observação expansiva da Cena e do Som da Nova Vida acontecendo. Novas visões de integridade, dignidade e respeito. Não importa como estamos, se branca, preta, amarela, cigana, indígena, monástica, singela, guerreira, forte, frágil, ambiciosa, animada, tristonha, majestosa ou humilde. Não importa, no topo da montanha, todas nós somos mulheres selvagens, instintivas, como a montanha, somos repletas de sabedoria profunda que nos contêm, e está contida em todas as mulheres na Terra.

Desceremos cantando a canção que nos faz relembrar e assumir o manto do nosso verdadeiro conhecimento, trazendo de volta dos nossos ossos, as nossas sábias lembranças genuínas, da força e do mistério da criação. Nossa vida criativa livres do manto do patriarcado. Invoquemos a muda dança: Até que não nasça mais dos nossos ventres, masculino algum com tais resquícios do sistema adoecido, invadiremos os terrenos psíquicos que nos pertenceram um dia, da indestrutível força da vida, algo escondido nas nossas profundezas capazes de criar.

Desfraldar as faixas. Preparar a Cura. Voltemos agora mulheres selvagens a uivar, rir, dançar e cantar para Aquela que sabe e nos ama tanto. Para nós é uma questão simples. Sem nós, a mulher selvagem morre. Sem a mulher selvagem, nós morremos. Para a verdadeira vida, ambas tem de existir.

Uivando vamos nos conectando com o poder e a força da natureza lunar, desbloqueando a usina da criatividade para a alma soprar a canção. Cantando acessaremos o sopro daquela que sabe, a voz da alma que ventando a verdade, vai soprando cura sob aquela parte de nós que está adoecida e precisa ser restaurada. Um mergulho no ponto mais profundo do amor em nós, onde a expressão da alma nos transborda o corpo. Dançamos a alegria de sermos quem somos, cheiro de húmus, sopro divino. Cenas de quem vive aos pés do morro, nas profundezas, belezas e mistérios da terra.

Aquela que sabe se encontra entre mundos racionais e mitológicos, ela é a articulação que interliga as duas realidades. Esse espaço alquímico da criação, onde todas nós reconhecemos, ou deveríamos reconhecer, uma vez que transitando por ele, conseguimos defini-lo, recorrendo a arte da dança, música, poesia e ou histórias. Um lugar onde as realidades são e ainda não são o que parecem ser. A força criativa que traz para a humanidade, infindo repertório de ideias e possibilidades.