Pedro Cabral Santo é um artista que vem, ao longo dos anos, demonstrando uma inegável capacidade de fundir os gestos mais delicados com as ideias mais duras, ou vice-versa. As suas obras, que podem ser consideradas de cariz conceptual, necessitam de espaço para serem vistas e vivenciadas. E necessitam, sobretudo, de um espectador que possua múltiplas referências e que (re)conheça o seu próprio tempo. Não é um artista de consumo fácil, porque o espírito de contenção que emana das suas obras só se revela, plenamente, aos iniciados. O vir-a-ser da obra torna-se real quando experienciado. Ver as obras de Pedro Cabral Santo é como ir ao encontro de alguém que se deseja muito conhecer e, como no poema de Donne, “ela é um livro místico e a poucos, a quem tal graça se consente, é dado lê-la”. Os poucos, a que tal graça se consente, são os que não desistem no primeiro encontro. São os que persistem em penetrar aos poucos nas camadas que cada obra possui. O que não quer dizer (de modo algum!) que suas obras sejam demasiado complexas. Pelo contrário, muitas delas são de uma simplicidade desarmante. São despidas de artifícios e o excesso só aparece quando convocado, o que raramente acontece. A sua última exposição, Unconditionally foi pensada para o espaço que a alberga. Todas as peças foram concebidas para significar em conjunto, sem que deixem de funcionar individualmente. Unconditionally é composta por sete peças que incluem instalação, vídeo-instalação, escultura e pintura instalada: Turn left, Turn left (Tru Thougths); Red and Blue (Just waiting); Ícaro II (Up, up into the sky); Selfish; NON; Ponto cego e Impressionism.
Turn left, turn left propõe uma viagem sobre a obra do artista – um comboio anda em círculos e podemos adivinhar um fim trágico, o encontro com o abismo. A viagem não se completa porque não é possível voltar ao princípio, que é também o fim. Chegar e partir são sempre dois lados de uma mesma viagem e o artista convida a despenharmo-nos com ele num abismo possível, previsível, antevisto porque não seguimos a indicação de virar à esquerda. Mas não nos enganemos, a mensagem é, aparentemente, óbvia. Até porque o óbvio nem sempre é visível. Como disse, as peças do artista são compostas por camadas de significação e é a significação o material que as compõe. A matéria é apenas o suporte, que pode ser mais ou menos sólido, mais ou menos nobre. O que torna cada peça um objeto único não é a sua condição de objeto, mas a sua condição de arte: a sua incondicional condição de objeto artístico, que não se confunde, no caso deste autor, com quadros, esculturas, vídeos ou quaisquer objetos que identifiquemos, imediatamente, como tal. A sua obra é composta de significação e de espaço – dum espaço que se converte em tempo, pela presença sempiterna do devir. Cada obra é um vir-a-ser que se realiza na experiência instalada no espaço que a circunda.
Red and Blue (Just waiting) remete-nos para o universo cinematográfico que é o universo do espaço-tempo, do eterno presente, que pode alçar-nos no futuro ou promover uma visita ao passado sem perder, jamais, a sua condição de presente/presença, daquilo que se desvela ante os nossos sentidos enquanto vemos/vivenciamos, que cria memórias partilhadas por muitos, como as memórias de uma espada de luz e de um filme que nos fala do mito do herói.
E aparece-nos um herói, não o do filme mas um herói mítico que tentou roubar a luz aos deuses e que se perdeu neste intento: Ícaro. (Up, up into the sky) é um totem, objeto fundador de uma cultura cuja lógica não obedece à linearidade do tempo histórico mas repete, infinitamente, o mesmo percurso circular – o herói parte para cumprir sua jornada e retorna para ocupar o lugar do pai. O Ícaro II é um boneco de plástico, herói de novas jornadas e fruto de uma cultura flutuante e permeável. O artista fala-nos do herói de cada um de nós, de cada época, de cada circunstância. Eu sou eu e minha circunstância disse o filósofo espanhol. E esta circunstância do eu aqui e agora é que determina os símbolos que a representam. Cada época tem seu Ícaro, tem sua luz própria. E estamos na era do simulacro da luz – da sua reinvenção nos laboratórios de efeitos especiais.
Do espaço partimos para um mergulho num aquário de peixes tropicais: Selfish. Isto não é um aquário, seria uma legenda possível para esta vídeo-instalação. É um simulacro de aquário autorreflexivo, como o título indica: selfish. Criaturas marinhas que refletem sobre si mesmas, imagem que se reflete sobre si mesma. Obra que reflete sobre si mesma e sobre a sua condição de arte.
NON pode dizer-nos o que não é. Ou sobre o que não quer falar. NON é uma palavra composta de letras que estão sobre uma mesa de trabalho. Uma proposta de jogo, uma brincadeira de criança – como o comboio, o Pokemon, a espada de Star Wars. Schiller acreditava que a arte era um jogo entre a forma sensível e o conteúdo que poderia ser mais impenetrável mas que, quando conjugado com a forma, se tornava passível de ser percebido e vivenciado. Um jogo entre a dureza e a permeabilidade, entre a seriedade e a leveza, entre a delicadeza e a resistência dos materiais. O jogo, na arte de Cabral Santo, é de origem schilleriana – é um impulso demasiado humano e inevitável. A melhor, e talvez a única maneira, segundo o filósofo alemão, de se evadir do quotidiano.
Ponto Cego é aquele ponto específico em que não vemos nada – único ponto em que o espelho não consegue penetrar. Os automóveis trafegam pelas autopistas e pelas ruas e os motoristas tentam não pensar que há um ponto do retrovisor que funciona como um buraco negro – as imagens não aparecem e só se ouve o barulho de um carro que se aproxima perigosamente de nós. O que deixamos de ver para além dos carros que o retrovisor não reflete? E o que vemos afinal? E o que é que ouvimos/vemos? Como no final de Blow Up do Antonioni, o que vemos ou ouvimos depende da nossa disponibilidade para ver e ouvir, depende da nossa vontade de entrar no jogo e de nos deixarmos envolver pelos sons e pelas imagens, que, muitas vezes, não estão lá.
Impressionism, um conjunto de pinturas, fecha o ciclo que se iniciou com um comboio a despenhar-se. Pinturas que se insinuam, que nos abstraem e que nos absorvem – trinta telas pintadas de vermelho. Trinta telas vermelhas maculadas por manchas amarelas. Trinta telas que poderiam ser bandeiras, que poderiam ser simbólicas, que poderiam ter apenas um significado. Mas que funcionam, como o restante das obras, como um espaço de significação, para além do óbvio ou para aquém da superfície.
Virar à esquerda não é, no caso do artista, uma indicação de sentido. É o caminho que ele escolheu percorrer. Como disse Drummond “quando nasci, um anjo torto, desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”. Pedro Cabral Santo decidiu que seria, incondicionalmente, como artista, gauche na vida. Porque a sua obra é a sua verdadeira existência, a sua linguagem, o seu lugar da significação. Não acredito que se possa dizer o que o artista, ou a sua obra, quis dizer. As palavras apenas roçam os sentidos, insinuam as imagens, reverberam os sons. A obra, acredito, fala por si. Mas é preciso, nalguns casos, conhecer bem a sua língua, perceber as suas nuances, os seus ditos e não-ditos. A arte não é um lugar que se visita inocentemente e de onde se sai incólume. Pelo menos não esta arte, não a arte deste artista incondicionalmente engajado, comprometido naquilo que faz. E aquilo que faz também faz dele aquilo que ele é. Um artista. Incondicionalmente.